domingo, 19 de junho de 2022

ROMANCE: O BOBO - CAPÍTULO II - D. RIBAS - ALEXANDRE HERCULANO - COM GABARITO

Romance: O bobo capítulo II – D. Ribas

                Alexandre Herculano

        [...]

        “Numa sociedade em que as torpezas humanas assim apareciam sem véu, o julgá-las era fácil. O dificultoso era condená-las. Na extensa escala do privilégio, quando um feito ignóbil ou criminoso se praticava, a sua ação recaía, por via de regra, sobre aqueles que se achavam colocados nos degraus inferiores ao perpetrador do atentado. O sistema das jerarquias mal consentia os gemidos: como seria portanto possível a condenação? As leis civis, na verdade, procuravam anular ou pelo menos modificar esta situação absurda; mas era a sociedade que devorava as instituições, que não a compreendiam a ela, nem ela compreendia. Por que de reinado para reinado, quase de ano para ano, vemos renovar essas leis, que tendiam a substituir pela igualdade da justiça a desigualdade das situações? É porque semelhante legislação era letra morta, protesto inútil de algumas almas formosas e puras, que pretendiam fosse presente o que só podia ser futuro.

        Mas no meio do silêncio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injuria amarga e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Esse homem era o truão. O truão foi uma entidade misteriosa da Idade Média. Hoje a sua significação social é desprezível e impalpável; mas então era um espelho que refletia, cruelmente sincero, as feições hediondas da sociedade desordenada e incompleta. O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro material do vilipêndio.

        [...]

        Tal era o aspecto grandioso e poético daquela entidade social exclusivamente própria da Idade Média, padrão levantado à memória da liberdade e igualdade, e às tradições da civilização antiga, no meio dos séculos da jerarquia e da gradação infinita entre homens e homens. Quando, porém, chamamos miserável à existência do truão, a esta existência que descrevêramos tão folgada e risonha, tão cheia de orgulho, d’esplendor, de predomínio, era que nesse instante ela nos aparecera sob outro aspecto, contrário ao primeiro, e todavia não menos real. Passadas estas horas de convivência ou de deleite, que eram como uns oásis na vida triste, dura, trabalhosa e arriscada da Idade Média, o bobo perdia o seu valor momentâneo, e voltava à obscuridade, não à obscuridade de um homem, mas à de um animal doméstico. Então os desprezos, as ignomínias, os maus tratos daqueles que em público haviam sido alvos dos ditos agudos do chocarreiro, caíam sobre a sua cabeça humilhada cerrados como granizo, sem piedade, sem resistência, sem limite; era um rei desentronizado; era o tipo e o resumo das mais profundas misérias humanas. [...]”.

HERCULANO, Alexandre. O bobo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p. 19-20.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 44-5.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Torpezas: procedimentos indignos, torpes.

·        Ignóbil: desprezível, vil, adjeto.

·        Perpetrador: aquele que comete ou pratica atos condenáveis.

·        Hierarquias: séries contínuas de graus ou escalões, em ordem crescente ou decrescente; escalas.

·        Truão: bufo, bufão, saltimbanco, palhaço, aquele encarregado de fazer rir o público com mímicas, esgares, etc.

·        Hediondas: repelentes, repulsivas, horrendas.

·        Paços: palácios, edifícios suntuosos ou nobres.

·        Vilipêndio: desprezo, menoscabo, aviltamento.

·        Ignomínias: infâmias, grandes desonras.

·        Chocarreiro: aquele que diz chocarrices, isto é, gracejos atrevidos.

02 – No primeiro parágrafo do texto, o narrador caracteriza de modo crítico a sociedade da Idade Média. Quais seriam as principais marcas dessa sociedade?

      Segundo o narrador, a sociedade da Idade Média era marcada pela torpeza humana, ou seja, pela injustiça e pela crueldade. Havia, de um lado, privilégios e, de outro, crimes dificilmente condenados. A rígida hierarquização social fazia com que os que se encontravam nos degraus mais baixos acabassem sendo punidos. Enquanto os que ocupavam o topo não eram atingidos por punições.

03 – Ao descrever essa sociedade, o narrador usa um adjetivo que denuncia o que ele pensa sobre a situação que expõe. Que adjetivo é esse e o que ele evidencia?

      O adjetivo é “absurda” e seu uso evidencia a discordância total do narrador daquilo que descreve, considerando a situação sem sentido, inaceitável.

04 – Depois de discorrer sobre a sociedade da Idade Média, o narrador inicia o parágrafo seguinte com a conjunção adversativa “mas”, cuja função é a de introduzir uma ideia oposta à que foi apresentada anteriormente. Que ideias o narrador opõe com o uso do “mas”?

      O narrador opõe a ideia de injustiça do parágrafo anterior à ideia de que o bobo da corte seria o responsável por apresentar uma resistência a essa estrutura de privilégios: ele seria capaz de vingar os humildes, por meio das críticas que dirigia aos poderosos, ou seja, ele seria capaz de promover a justiça.

05 – Pela adjetivação dedicada ao bobo, é possível deduzir os valores que o autor busca simbolizar em sua figura. Copie o quadro a seguir no caderno e preencha-o para sintetizar suas conclusões:

Adjetivos    --                            Valores

Leve:          --   Sem peso na consciência, ético em suas ações.

Livre:          --   Sem amarras sociais, com uma conduta que acredita ser justa.

Juiz:           --   Agia com justiça, buscava minimizar as injustiças que uma sociedade regida por privilégios apresentava.

Algoz:        --    Punia aqueles que considerava injustos, mas que não eram punidos pela “justiça oficial”.

06 – No parágrafo final do trecho lido, o narrador coloca ao leitor os dois papéis exercidos pelo bobo da corte: o teatral, sua atuação como bobo da corte, e o social, em que ele é um indivíduo comum. Que diferença havia entre esses dois papéis?

      O papel teatral desempenhado pelo bobo da corte permitia que ele tivesse uma existência risonha, exercesse o seu poder crítico, já quando era apenas um indivíduo, fora de suas atribuições como bobo, ele voltava à obscuridade, voltava a ser alguém pertencente à base da pirâmide social da Idade Média, sem nenhum valor especial, um humilde como tantos outros.

07 – Qual a metáfora usada pelo narrador se referir ao lugar ocupado pelo bobo como indivíduo?

      O bobo seria, nesse caso, um “rei desentronizado”, ou seja, alguém que tinha muito poder e que o perdeu. Com essa metáfora, o narrador mostra que o privilégio do bobo em sua atuação na corte não era mantido quando ele voltava à sua vida cotidiana.

08 – Um dos sinônimos possíveis para bobo da corte é palhaço. Considerando o que você leu no texto, esse sinônimo seria capaz de evidenciar todos os papéis exercidos pelo bobo na sociedade medieval? Justifique sua resposta.

      O esperado é que os alunos respondam que não, pois a palavra “palhaço” relaciona-se mais à ideia de fazer rir, divertir o outro, enquanto, no texto, o bobo tinha não apenas a função de entreter, mas também a de criticar, promover a sátira social, “vingar” os que não tinham voz, fazendo uso dos privilégios que sua atuação teatral favorecia.

 


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