domingo, 19 de junho de 2022

CONTO: A SOPA - DALTON TREVISAN - COM GABARITO

 CONTO:A SOPA

              Dalton Trevisan

 Subiu lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez, no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa, colocou-o diante do marido. 

Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os vapores capitosos.

-- Aonde é que vai? 

O filho abriu a torneira do banheiro:

-- Fazer a barba.

-- Hora da janta. Vem comer. 

Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai.

-- Não quero jantar. Sem fome. 

O homem suspendeu a colher:

-- Não quer jantar, mas vem para a mesa. 

Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.

-- Dar uma volta. 

O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo ao coração das margaridas. 

-- Saiu agora do quarto, filho de barão! Mas eu... Quando me deitar de dia na cama é para morrer! 

A mão do filho abandonou o garfo e não se mexeu. 

-- Volta cedo, não é?

A voz cansada da mãe, ainda de costas para a mesa. Não sabia ela que, ao defendê-lo, perdia a causa do filho? O homem esvaziou o prato e, descansando a colher, examinou as mãos enrugadas. 

-- Estas mãos... 

Sacudidas de ligeiro tremor. 

-- ... de um velho! 

A mulher apanhou o prato, encheu-o até a beirada. O marido retorceu as pontas úmidas do bigode:

-- Você não come?

O filho contornava com o garfo as pétalas na toalha. 

-- Não estou com vontade. 

-- Depois o senhor vai para o quarto. 

Cheirava a colher e sorvia a sopa, estalando a língua. O filho ergueu-se da mesa. 

-- O senhor fica sentado. Não tem pão nesta casa?

A mulher trouxe o pão. Ele não o cortava: agarrava-o inteiro na mão e mordia várias vezes; em seguida partia-o em pedaços, alinhados diante do prato, atacando um por um, entre as colheradas. 

-- Volta cedo, não é, meu filho?

De novo a mãe, nunca aprenderia. 

-- Agora não vou mais. 

O pai dizia a última palavra:

-- Uma vergonha! O chefe tem de jantar sozinho. O filho preguiçoso... até para comer. A mulher... 

Com seus brados retiniam os talheres. 

-- ... tem o estômago delicado.

Não se mexeu, curvada sobre o fogão.

-- Olhe para mim quando falo com a senhora! 

Ela se virou, a enxugar as mãos na saia. 

-- Depois de velha, melindrosa. Não pode comer com o rei da casa, que lhe sustenta o filho e lhe dá o dinheiro?

-- Sabe por que não sento.

Os dois a olharam com espanto, nunca discutiu as ordens do marido. 

-- Sei não, dona princesa. Pois me conte. 

Ele pedia, a colher no ar:

-- Perdeu a coragem, que não fala?

Outra vez a mulher deu-lhe as costas. 

-- Só nojo de você. 

Ele começou a soprar, manchava de borrifos a toalha. 

-- O quê? O quê? Repita, mulher. 

A dona abriu o fogão, espertou as brasas, encheu-o de lenha:

-- Nada espero da vida. Mas não posso te ver comer. Sei que é triste para a mulher ter nojo do marido. Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra. 

O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

 

Faraco, Carlos Emílio Língua portuguesa: linguagem e interação / Faraco, Moura, Maruxo Jr. -- 3. ed. -- São Paulo: Ática, 2016.p.299/300.

Entendendo o texto

01.               De que se trata o conto?

         Relata o cotidiano de uma família durante a hora do jantar.

02.               Cite algumas características do chefe da casa.

            É um senhor mal-humorado, não muito educado, sem falta de modos e de higiene na hora de se alimentar.

03.               Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?

           O pai, a mãe e o filho.

04.               Qual é a tipologia predominante no conto:

a)   Narrativa.

b)   Argumentativa.

c)   Descritiva.

05.               Em relação ao discurso das personagens- Presença de discurso: a) direto

                b) indireto

06. Onde ocorrem os fatos?

       Na cozinha, na mesa do jantar.

07.Que fato provocou o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

     O fato do homem comer a sopa sozinho.

08. Em que momento surge o conflito da história?

      Na hora em que a mulher diz que tem nojo do marido. “Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra”.

 09. Qual o desfecho (epílogo ou conclusão) da história?

       O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher. 

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