CONTO:A SOPA
Dalton Trevisan
Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do
quarto e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os
vapores capitosos.
-- Aonde é que vai?
O filho abriu a torneira do banheiro:
-- Fazer a barba.
-- Hora da janta. Vem comer.
Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a
toalha no pescoço, não olhou o pai.
-- Não quero jantar. Sem fome.
O homem suspendeu a colher:
-- Não quer jantar, mas vem para a mesa.
Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher,
aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios grossos, tragava-o com
delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A
mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.
-- Dar uma volta.
O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o
filho revolvia a ponta do garfo ao coração das margaridas.
-- Saiu agora do quarto, filho de barão! Mas
eu... Quando me deitar de dia na cama é para morrer!
A mão do filho abandonou o garfo e não se
mexeu.
-- Volta cedo, não é?
A voz cansada da mãe, ainda de costas para a
mesa. Não sabia ela que, ao defendê-lo, perdia a causa do filho? O homem
esvaziou o prato e, descansando a colher, examinou as mãos enrugadas.
-- Estas mãos...
Sacudidas de ligeiro tremor.
-- ... de um velho!
A mulher apanhou o prato, encheu-o até a
beirada. O marido retorceu as pontas úmidas do bigode:
-- Você não come?
O filho contornava com o garfo as pétalas na
toalha.
-- Não estou com vontade.
-- Depois o senhor vai para o quarto.
Cheirava a colher e sorvia a sopa, estalando a
língua. O filho ergueu-se da mesa.
-- O senhor fica sentado. Não tem pão nesta
casa?
A mulher trouxe o pão. Ele não o cortava:
agarrava-o inteiro na mão e mordia várias vezes; em seguida partia-o em
pedaços, alinhados diante do prato, atacando um por um, entre as
colheradas.
-- Volta cedo, não é, meu filho?
De novo a mãe, nunca aprenderia.
-- Agora não vou mais.
O pai dizia a última palavra:
-- Uma vergonha! O chefe tem de jantar sozinho.
O filho preguiçoso... até para comer. A mulher...
Com seus brados retiniam os talheres.
-- ... tem o estômago delicado.
Não se mexeu, curvada sobre o fogão.
-- Olhe para mim quando falo com a
senhora!
Ela se virou, a enxugar as mãos na saia.
-- Depois de velha, melindrosa. Não pode comer
com o rei da casa, que lhe sustenta o filho e lhe dá o dinheiro?
-- Sabe por que não sento.
Os dois a olharam com espanto, nunca discutiu
as ordens do marido.
-- Sei não, dona princesa. Pois me conte.
Ele pedia, a colher no ar:
-- Perdeu a coragem, que não fala?
Outra vez a mulher deu-lhe as costas.
-- Só nojo de você.
Ele começou a soprar, manchava de borrifos a
toalha.
-- O quê? O quê? Repita, mulher.
A dona abriu o fogão, espertou as brasas,
encheu-o de lenha:
-- Nada espero da vida. Mas não posso te ver
comer. Sei que é triste para a mulher ter nojo do marido. Você chupa a colher
como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais
desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua
cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que eu
me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra.
O filho abandonou a cozinha e desceu a escada.
Os dois ouviram bater à porta da rua. O marido encarou pela primeira vez a
mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um
lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher.
Faraco, Carlos Emílio Língua portuguesa: linguagem e interação
/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. -- 3. ed. -- São Paulo: Ática, 2016.p.299/300.
Entendendo
o texto
01. De que se trata o conto?
Relata o cotidiano de uma família durante a hora do
jantar.
02. Cite algumas características do chefe da casa.
É um senhor mal-humorado, não
muito educado, sem falta de modos e de higiene na hora de se alimentar.
03. Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?
O pai, a mãe e o filho.
04. Qual é a tipologia predominante no conto:
a) Narrativa.
b) Argumentativa.
c) Descritiva.
05. Em relação ao discurso das personagens- Presença de discurso: a) direto
b) indireto
06. Onde ocorrem os
fatos?
Na
cozinha, na mesa do jantar.
07.Que fato provocou o
desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?
O fato
do homem comer a sopa sozinho.
08. Em que momento surge
o conflito da história?
Na hora em que a mulher diz que tem nojo
do marido. “Você chupa a colher como se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a
Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo.
Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me
peça o que quiser. Não que eu me sente a essa mesa com você e tua sopa mais
negra”.
O filho
abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater à porta da rua. O
marido encarou pela primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura
boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e
lambeu a colher.
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