Poema: SAUDADES DO ESCRAVO
Luiz Gama
Escravo – não, não morri
Nos ferros da escravidão;
Lá nos palmares vivi,
Tenho livre o coração!
Nas minhas carnes rasgadas,
Nas faces ensanguentadas
Sinto as torturas de cá;
Deste corpo desgraçado
Meu espírito soltado
Não partiu – ficou-me lá!...
Naquelas quentes areias
Naquela terra de fogo,
Onde livre de cadeias
Eu corria em desafogo...
Lá nos confins do horizonte...
Lá nas alturas do céu...
De sobre a mata florida
Esta minh’alma perdida
Não veio – só parti eu.
A liberdade que eu tive
Por escravo não perdi-a;
Minh’alma que lá só vive
Tornou-me a face sombria,
O zunir do fero açoite
Por estas sombras da noite
Não chega, não, aos palmares!
Lá tenho terras e flores...
Nuvens e céus... os meus lares!
[...]
Escravo – não, ainda vivo,
Inda espero a morte ali;
Sou livre embora cativo,
Sou livre, inda não morri!
Meu coração bate ainda
Nesse bater que não finda;
Sou homem – Deus o dirá!
Deste corpo desgraçado
Meu espírito soltado
Não partiu – ficou-me lá!
São Paulo, 1850.
GAMA, Luiz. Primeiras
trovas burlescas e outros poemas. Edição preparada por Lígia Fonseca Ferreira.
São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 162-164. Fragmento.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 90.
Entendendo o poema:
01 – Quem é o eu lírico do
poema? Justifique com base no texto.
É um homem negro,
um escravo que vive cativo, mas sente sua alma livre.
02 – No poema, é possível
notar uma oposição entre um “lá” e um “cá”, num diálogo intertextual com a
Canção do exílio de Gonçalves Dias. No poema gonçalvino, o “lá” era
representado pelo Brasil e o “cá” representado por Portugal. Identifique os
lugares representados pelo “lá” e pelo “cá” no poema de Luiz Gama.
O “lá” é o lugar da liberdade: o quilombo
dos Palmares (Lá nos palmares vivi). Já o “cá” é o lugar da escravidão, a
senzala (Nas faces ensanguentadas / Sinto as torturas de cá).
03 – O eu lírico apresenta
idealismo em seu poema, ao separar o corpo da alma, com privilégio da alma
sobre o corpo. Qual a importância desse idealismo no contexto de escravidão do
poema?
Esse idealismo é
responsável por reiterar a liberdade: embora o corpo do eu lírico possa estar
escravo, sua alma é livre, como ele expressa no trecho: “A liberdade que eu
tive / Por escravo não perdi-a: / Minh’alma que lá só vive”. Ou seja, ainda que
cativo, a alma do escravo não se rende e se recusa a abandonar a esperança de
liberdade, vagando pelo “lá” onde era livre.
04 – Considerando suas
respostas aos itens anteriores, é possível ou não afirmar que se trata de um
poema de resistência? Justifique.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Sim, trata-se um poema de resistência. A própria citação do
Quilombo dos Palmares corrobora essa leitura, já que esse foi um lugar de união
e luta conjunta dos escravos contra a realidade escravista. Afora isso, o eu
lírico não apresenta uma postura de resignação em relação à escravidão, mas
luta pela liberdade, alimentando-se da memória dos tempos em que viveu livre,
recusando-se a aprisionar sua alma.
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