quarta-feira, 8 de junho de 2022

CRÔNICA: O RECALCITRANTE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 CRÔNICA: O recalcitrante

                    Carlos Drummond de Andrade

        O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a micro figura de uma piscina.

        – Ei, moço quer fazer o favor de levantar?

        O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade), nem-te-ligo.

        O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou:

        – Estes caras são de morte.

        Devia estar pensando: Todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam problemas. Bem disse o Dario, Quando fazia gol no Atlético Mineiro: Problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem como viajar em coletivos. Não aprendem e não querem aprender. Tendo comprado passagem por 65 centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-da-peste. Mas insistiu:

        – Moço! Ô moço!

        Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência:

        – O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção?

        O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre.

        Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa “fria”. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair do seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:

        – Vamos levantar?

        O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:

        – Como é, não levanta?

        – Estou bem aqui.

        – Eu sei, mas é preciso levantar.

        – Levantar pra quê?

        – Pra que, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.

        – Tem certeza que é água do mar?

        – Tá na cara.

        – Como tá na cara? Analisou?

        Forrou-se de paciência para responder:

        – Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode ser essa que está pingando se não for água do mar? Só se…

        – Se o quê?

        – Nada.

        – Vamos, diz o que pensou.

        – Não pensei nada. Digo que o senhor tem de levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.

        – E daí?

        – Daí, que é proibido.

        – Proibido suar?

        – Claro que não.

        – Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?

        – Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.

        – Que portaria?

        – Aquela pregada ali, não está vendo? “O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé.

        – Portaria nenhuma diz que o passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom?

        – O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.

        – Eu, descer porque estou suado? Sem essa.

        – O ônibus vai para e eu chamo a polícia.

        – A polícia vai me prender porque estou suando?

        – Vou botar o senhor pra fora porque é um… recalcitrante.

        O passageiro pulou, transfigurado:

        – O quê? Repita se for capaz.

        – Re… calcitrante.

        – Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!

        – Eu? Não insultei.

        – Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o que, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.

        – Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante…

        – Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão, ou…

        Retira não retira, o ônibus chegou ao meu destino, eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que consequências físicas e outras teve o emprego da palavra “recalcitrante”.

Carlos Drummond de Andrade. “Recalcitrante”. In: De notícias e não-notícias faz-se a crônica. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.

Fonte: Língua portuguesa – Palavras – Hermínio Geraldo Sargentim – 5ª série – IBEP – 1ª edição, São Paulo, 2002. p. 50-3.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Escanchar: sentado com as pernas abertas.

·        Ostentar: exibia.

·        Enfado: aborrecimento.

·        Olímpico: majestoso.

·        Transfigurado: transtornado.

·        Recalcitrante: indiscutível, irredutível, teimoso.

02 – Empregue convenientemente nas frases as palavras: recalcitrante, placidamente, transfigurado, indiscutível, infalivelmente, completando a frase.

a)   Depois das palavras do pai, o menino ficou transfigurado.

b)   O professor chega infalivelmente no horário.

c)   Olhou placidamente para as pessoas e saiu.

d)   Você será considerado recalcitrante se não acatar a ordem do diretor.

e)   Saber comunicar-se é uma necessidade indiscutível.

03.Apesar dos  elementos  narrativos,  o  texto  em  estudo  é  uma  crônica. Marque  um X na(s)  alternativa(s)  que  apresente(m)  características desse gênero textual.

      a)(  ) A crônica trata de temas inteiramente da fantasia, inventando acontecimentos e personagens que não poderiam existir em nosso cotidiano.

       b)( X ) Muitas crônicas usam o humor e a ironia para fazer uma crítica aos nossos costumes e modos de pensar a vida.

       c)( ) O cronista procura sempre passar informações em linguagem objetiva, sem sua interpretação pessoal, da mesma forma que as notícias e reportagens.

       d)( X  ) Diferente das notícias, a crônica apresenta um tom literário, com termos em sentido conotativo.

       e)( X  ) O cronista inspira - se a partir do contato com noticiários e/ou partindo de fatos do seu cotidiano.

 04. Que problema movimenta o enredo de O Recalcitrante?

      O enredo é um homem, com a roupa molhada, querer viajar sentado, em um ônibus, sendo que é proibido (ele só poderia viajar de pé).

 05. Qual é o clímax da crônica?

       O clímax da crônica acontece quando o homem infrator é chamado de um termo que desconhece (recalcitrante) e pensa estar sendo ofendido.

 06.Em: “Daquele passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água”, o sujeito do verbo grifado é:

    ( a ) “Daquele passageiro”  

    ( b ) “Um fio de água”    

    ( c ) “Água” 

    ( d ) “No banco lateral”

 

07. Qual figura de construção foi aplicada ao trecho em análise na questão 06?

          ( a ) Hipérbato

         ( b ) Elipse

         ( c ) Zeugma

         ( d ) Polissíndeto

 

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