CRÔNICA: BRILHANTE, ADAMASTOR
Antonio
Prata
Este ano o verão demorou a chegar e parece querer
compensar o atraso trabalhando dobrado. Subo a Angélica de carro e vejo um
amigo a pé, pela calçada. Ele sua, bufa e resmunga qualquer coisa,
provavelmente contra o sol, a gravidade, nossa condição bípede, Deus e todos os
santos. Dou uma buzinada, abro o vidro, pergunto aonde vai, diz que ao fórum de
Pinheiros. Vou para perto, ofereço uma carona. Ele salta pra dentro do carro e
logo fico sabendo que sua infelicidade tem menos a ver com verão do que com o
vizinho, um sujeito de maus bofes chamado Adamastor.
Meu amigo é educado e pacífico. Não cito seu nome,
pois é réu num processo aberto pelo tal Adamastor no Tribunal de Pequenas
Causas; não quero prejudicá-lo. Vamos chamá-lo de Ivo, nome que me parece
adequado a um sujeito educado e pacífico. Assim como Adamastor cabe
perfeitamente a um homem ignorante e agressivo - e vejam a coincidência, pois
Adamastor é mesmo o nome do vizinho, que faço questão de citar para que se
cubra de infâmia. Adamastor. Adamastor. Adamastor.
Ivo mora numa casa térrea. A casa fica de lado pra
rua, de frente pra um jardinzinho comprido e prum muro de quatro metros de
altura. Do outro lado do muro vive o Adamastor, mas Ivo nunca se lembra disso
ao abrir a porta, todas as manhãs, pois entre o Adamastor e meu amigo, além do
muro, há uma enorme trepadeira, uma tela verde de 4 x 10 metros, que o próprio
Ivo plantou faz uma década, e ali está a embelezar sua vista e purificar o ar
da cidade.
Se todos tivessem trepadeiras como a do Ivo, talvez
não fizesse tanto calor. Talvez o verão não demorasse a chegar nem estivesse
trabalhando dobrado. Talvez ainda houvesse garoa. Talvez o mundo estivesse
salvo. Mas o mundo não está salvo, há menos trepadeiras do que sujeitos feito o
Adamastor que, vejam só, encasquetou que a planta deixa sua casa úmida e que o
Ivo precisa arrancá-la.
Eu disse que o Ivo era educado e pacífico. Não
minto. Quando o Adamastor apareceu, trazendo o cunhado para intimidar, meu
amigo ouviu calmamente sua queixa. Disse que ia chamar um engenheiro capaz de
dizer se a trepadeira era a culpada pela umidade e, caso se confirmasse a suspeita,
ele a cortaria. "É a trepadeira!", afirmou o Adamastor, com aquele
pequeno gozo sadomasoquista de quem acredita que o próprio sofrimento é fruto
única e exclusivamente do prazer alheio e que, uma vez exterminada a alegria do
outro, seu incômodo cessará, na triste matemática dos egoístas, onde só existe
a soma zero.
Pois bem, meu amigo chamou não um nem dois, mas
três engenheiros. Todos disseram, na frente do Adamastor, que a trepadeira é
inocente. Que a umidade vem do chão, do lado da casa do querelante, mas
Adamastor não aceita e, 15 dias atrás, ao abrir a porta, Ivo encontrou, além da
trepadeira, uma intimação judicial. Adamastor está levando a trepadeira aos
tribunais. Não lhe importam a engenharia, a botânica, a lógica. O negócio é
pessoal. Com seu nome de gigante e sua alma de gnomo, ele vai até o fim, até
arrancar a trepadeira, até deixar o mundo um pouquinho pior e poder gozar, em
sua toca úmida e abafada, o triunfo de sua mediocridade. Brilhante, Adamastor.
PRATA,
Antonio. Brilhante, Adamastor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 fev. 2012.
Caderno Cotidiano. Disponível em:
folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/24685-brilhante-adamastor.shtml. Acesso em: ago.
2015.
Fonte: Livro: Língua
Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo:
Ática, 2016. p.82-5.
"Adamastor
é o nome de um gigante mitológico, citado pelo poeta Luís de Camões em seu
poema épico Os lusíadas. Nesse poema, que narra uma das primeiras viagens
marítimas empreendidas pelos portugueses ao redor do continente africano, o
gigante Adamastor tenta destruir os navios portugueses num dos pontos do
percurso da viagem. Na mitologia dessa obra poética, Adamastor representa os
perigos naturais enfrentados pelos navegadores ao longo de sua jornada. Na
crônica de Antonio Prata, o nome Adamastor remete metaforicamente a esse
gigante. Veja como Camões descreve Adamastor:
De
disforme e grandíssima estatura,
O rosto
carregado, a barba esquálida,
Os olhos
encovados, e a postura
Medonha e
má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de
terra e crespos os cabelos,
A boca
negra, os dentes amarelos."
CAMÕES,
Luís Vaz de. Os lusíadas. 13ª ed. São Paulo: Melhoramentos, [s.d].
Glossário:
esquálido: imundo; desalinhado.
LEGENDA:
O gigante Adamastor, em escultura de Julio Vaz Júnior (1877-1963) instalada no
miradouro de Santa Catarina, em Lisboa.FONTE: © JB-2078/Alamy/Other Images
ENTENDENDO A CRÔNICA
1. Na crônica, qual evento pode ser considerado o
motivo que desencadeia a sucessão de ações? Justifique sua resposta.
O encontro entre os dois amigos. É o
encontro que desencadeia a história narrada e comentada na crônica.
2. Duas das personagens presentes no texto podem ser
consideradas centrais - o protagonista e o antagonista.
a) Quem são elas?
Ivo e Adamastor.
b) Por que estão em oposição uma à outra?
Há
uma disputa entre elas por causa da trepadeira, o que as coloca em posições
antagônicas.
3. Uma das características que o enunciador atribui a
Ivo é ser educado e pacífico. Vamos relacioná-la ao desenvolvimento da crônica.
a) Que ações empreendidas por essa personagem
poderiam justificar a atribuição dessa característica?
A tentativa de negociar o corte da
trepadeira com o vizinho Adamastor.
b) Em pelo menos duas passagens do texto, essa
característica é explicitada e reforçada. Releia os trechos:
I.
Meu amigo é educado e pacífico. Não cito seu nome,
pois é réu num processo aberto pelo tal Adamastor no Tribunal de Pequenas
Causas; não quero prejudicá-lo. Vamos chamá-lo de Ivo, nome que me parece
adequado a um sujeito educado e pacífico. [...] (linhas 12-17)
II.
Eu disse que o Ivo era educado e pacífico. Não
minto. [...] (linhas 39-40)
Em sua opinião, por que a insistência nessa
característica?
Ao insistir nessa característica de Ivo, ressalta-se,
por contraste, a característica de Adamastor: a truculência.
4. O desfecho do texto é construído com ironia.
Releia-o a seguir, observando especialmente os trechos em destaque:
[...] Com
seu nome de gigante e sua alma de gnomo, ele vai até o fim, até arrancar a
trepadeira, até deixar o mundo um pouquinho pior e poder gozar, em sua toca
úmida e abafada, o triunfo de sua mediocridade. Brilhante, Adamastor. (linhas
59-64)
a) Explique
a ironia, em destaque.
A ironia forma-se pelo contraste
entre o sentido do enunciado "[...] até deixar o mundo um pouquinho pior
[...]" e o elogio que encerra a crônica, "Brilhante, Adamastor".
b) Em sua opinião, o que leva o autor da crônica a
esse desfecho irônico?
Resposta pessoal. Sugestão: Perceber que a atitude irônica se
deve ao fato de o autor criticar as ações empreendidas pelo vizinho - mesmo
sabendo que a trepadeira não é a responsável pela umidade da casa, ele insiste
em que ela seja destruída.