quarta-feira, 12 de maio de 2021

CRÔNICA: BRILHANTE, ADAMASTOR - ANTONIO PRATA - COM GABARITO

 CRÔNICA: BRILHANTE, ADAMASTOR        

                        Antonio Prata

Este ano o verão demorou a chegar e parece querer compensar o atraso trabalhando dobrado. Subo a Angélica de carro e vejo um amigo a pé, pela calçada. Ele sua, bufa e resmunga qualquer coisa, provavelmente contra o sol, a gravidade, nossa condição bípede, Deus e todos os santos. Dou uma buzinada, abro o vidro, pergunto aonde vai, diz que ao fórum de Pinheiros. Vou para perto, ofereço uma carona. Ele salta pra dentro do carro e logo fico sabendo que sua infelicidade tem menos a ver com verão do que com o vizinho, um sujeito de maus bofes chamado Adamastor.

Meu amigo é educado e pacífico. Não cito seu nome, pois é réu num processo aberto pelo tal Adamastor no Tribunal de Pequenas Causas; não quero prejudicá-lo. Vamos chamá-lo de Ivo, nome que me parece adequado a um sujeito educado e pacífico. Assim como Adamastor cabe perfeitamente a um homem ignorante e agressivo - e vejam a coincidência, pois Adamastor é mesmo o nome do vizinho, que faço questão de citar para que se cubra de infâmia. Adamastor. Adamastor. Adamastor.

Ivo mora numa casa térrea. A casa fica de lado pra rua, de frente pra um jardinzinho comprido e prum muro de quatro metros de altura. Do outro lado do muro vive o Adamastor, mas Ivo nunca se lembra disso ao abrir a porta, todas as manhãs, pois entre o Adamastor e meu amigo, além do muro, há uma enorme trepadeira, uma tela verde de 4 x 10 metros, que o próprio Ivo plantou faz uma década, e ali está a embelezar sua vista e purificar o ar da cidade.

Se todos tivessem trepadeiras como a do Ivo, talvez não fizesse tanto calor. Talvez o verão não demorasse a chegar nem estivesse trabalhando dobrado. Talvez ainda houvesse garoa. Talvez o mundo estivesse salvo. Mas o mundo não está salvo, há menos trepadeiras do que sujeitos feito o Adamastor que, vejam só, encasquetou que a planta deixa sua casa úmida e que o Ivo precisa arrancá-la.

Eu disse que o Ivo era educado e pacífico. Não minto. Quando o Adamastor apareceu, trazendo o cunhado para intimidar, meu amigo ouviu calmamente sua queixa. Disse que ia chamar um engenheiro capaz de dizer se a trepadeira era a culpada pela umidade e, caso se confirmasse a suspeita, ele a cortaria. "É a trepadeira!", afirmou o Adamastor, com aquele pequeno gozo sadomasoquista de quem acredita que o próprio sofrimento é fruto única e exclusivamente do prazer alheio e que, uma vez exterminada a alegria do outro, seu incômodo cessará, na triste matemática dos egoístas, onde só existe a soma zero.

Pois bem, meu amigo chamou não um nem dois, mas três engenheiros. Todos disseram, na frente do Adamastor, que a trepadeira é inocente. Que a umidade vem do chão, do lado da casa do querelante, mas Adamastor não aceita e, 15 dias atrás, ao abrir a porta, Ivo encontrou, além da trepadeira, uma intimação judicial. Adamastor está levando a trepadeira aos tribunais. Não lhe importam a engenharia, a botânica, a lógica. O negócio é pessoal. Com seu nome de gigante e sua alma de gnomo, ele vai até o fim, até arrancar a trepadeira, até deixar o mundo um pouquinho pior e poder gozar, em sua toca úmida e abafada, o triunfo de sua mediocridade. Brilhante, Adamastor.

PRATA, Antonio. Brilhante, Adamastor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 fev. 2012. Caderno Cotidiano. Disponível em: folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/24685-brilhante-adamastor.shtml. Acesso em: ago. 2015.

Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.82-5. 

"Adamastor é o nome de um gigante mitológico, citado pelo poeta Luís de Camões em seu poema épico Os lusíadas. Nesse poema, que narra uma das primeiras viagens marítimas empreendidas pelos portugueses ao redor do continente africano, o gigante Adamastor tenta destruir os navios portugueses num dos pontos do percurso da viagem. Na mitologia dessa obra poética, Adamastor representa os perigos naturais enfrentados pelos navegadores ao longo de sua jornada. Na crônica de Antonio Prata, o nome Adamastor remete metaforicamente a esse gigante. Veja como Camões descreve Adamastor:

De disforme e grandíssima estatura,

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida,

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos."

CAMÕES, Luís Vaz de. Os lusíadas. 13ª ed. São Paulo: Melhoramentos, [s.d].

Glossário:

esquálido: imundo; desalinhado.

LEGENDA: O gigante Adamastor, em escultura de Julio Vaz Júnior (1877-1963) instalada no miradouro de Santa Catarina, em Lisboa.FONTE: © JB-2078/Alamy/Other Images

ENTENDENDO A CRÔNICA

1. Na crônica, qual evento pode ser considerado o motivo que desencadeia a sucessão de ações? Justifique sua resposta.

O encontro entre os dois amigos. É o encontro que desencadeia a história narrada e comentada na crônica.

2. Duas das personagens presentes no texto podem ser consideradas centrais - o protagonista e o antagonista.

a) Quem são elas?

     Ivo e Adamastor.

b) Por que estão em oposição uma à outra?

   Há uma disputa entre elas por causa da trepadeira, o que as coloca em posições antagônicas.

3. Uma das características que o enunciador atribui a Ivo é ser educado e pacífico. Vamos relacioná-la ao desenvolvimento da crônica.

a) Que ações empreendidas por essa personagem poderiam justificar a atribuição dessa característica?

A tentativa de negociar o corte da trepadeira com o vizinho Adamastor.

b) Em pelo menos duas passagens do texto, essa característica é explicitada e reforçada. Releia os trechos:

I.

Meu amigo é educado e pacífico. Não cito seu nome, pois é réu num processo aberto pelo tal Adamastor no Tribunal de Pequenas Causas; não quero prejudicá-lo. Vamos chamá-lo de Ivo, nome que me parece adequado a um sujeito educado e pacífico. [...] (linhas 12-17)

II.

Eu disse que o Ivo era educado e pacífico. Não minto. [...] (linhas 39-40)

Em sua opinião, por que a insistência nessa característica?

Ao insistir nessa característica de Ivo, ressalta-se, por contraste, a característica de Adamastor: a truculência.

4. O desfecho do texto é construído com ironia. Releia-o a seguir, observando especialmente os trechos em destaque:

 [...] Com seu nome de gigante e sua alma de gnomo, ele vai até o fim, até arrancar a trepadeira, até deixar o mundo um pouquinho pior e poder gozar, em sua toca úmida e abafada, o triunfo de sua mediocridade. Brilhante, Adamastor. (linhas 59-64)

a)   Explique a ironia, em destaque.

          A ironia forma-se pelo contraste entre o sentido do enunciado "[...] até deixar o mundo um pouquinho pior [...]" e o elogio que encerra a crônica, "Brilhante, Adamastor".

b) Em sua opinião, o que leva o autor da crônica a esse desfecho irônico?

    Resposta pessoal. Sugestão: Perceber que a atitude irônica se deve ao fato de o autor criticar as ações empreendidas pelo vizinho - mesmo sabendo que a trepadeira não é a responsável pela umidade da casa, ele insiste em que ela seja destruída.

 

 

 

 

 

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