quarta-feira, 12 de maio de 2021

CRÔNICA: VERGONHA PARCELADA - GREGORIO DUVIVIER - COM GABARITO

 CRÔNICA: VERGONHA PARCELADA

                Gregorio Duvivier

NÃO ESTRANHE se você me vir levando as mãos ao rosto no meio da rua e gritando comigo mesmo: "Não! Não, Gregorio! Por que você fez isso, cara?". Sofro de uma síndrome comum: a da vergonha parcelada. Algumas situações me causam tanto embaraço que pago por elas a vida inteira. A cada vez que uma vergonha antiga me vem à cabeça, sofro como se fosse a primeira vez que estivesse sofrendo.

Não parecem vergonhas monumentais, são vergonhas ridículas - mas é isso o que faz delas monumentais. Exemplo: no aeroporto de Congonhas, pedi um café. "Carioca?" - a moça perguntou. "Sou", respondi, achando que ela queria saber minha procedência.

A moça pensou que eu tinha feito uma piadinha péssima e retribuiu. Tive vontade de me esconder debaixo dos bancos do salão de embarque pelo simples fato de que alguém no mundo tinha achado que eu era uma pessoa que faria aquele tipo de piada. Até hoje, só passo em frente à Casa do Pão de Queijo de Congonhas com uma mochila escondendo o rosto.

Outro dia, chovia a cântaros - deve fazer um bom tempo, porque faz um bom tempo que não chove a cântaros. Acenava desesperadamente para os táxis, em frente ao Shopping da Gávea. Eis que um sujeito surge e começa a fazer o mesmo, alguns passos à minha frente. Todo ser humano civilizado sabe que, a partir do momento em que uma pessoa acena para os táxis, os outros candidatos têm que se posicionar atrás dela. Na frente, nunca. Revoltado, intercedi: "Amigo, desculpa, cheguei antes". Ao que ele respondeu, humilde: "Tô chamando táxi pra você. Sou segurança do shopping". E conseguiu um táxi, e abriu a porta pra mim, e eu entrei, e ele bateu a porta, e junto com a porta se abateu sobre mim o peso da miséria humana.

Encontrei um amigo de longa data. Não lembrava seu nome, e ainda hoje não lembro - talvez fosse Marcelo. Consegui disfarçar chamando o amigo de  brother, até que sua namorada me perguntou: "Há quanto tempo você conhece o Marcelo?". Respondi: "Desculpa, não sei de quem você tá falando". O Marcelo em questão, perplexo, me observava com um misto de tristeza pelo esquecimento e espanto pela minha estupidez.

Enquanto escrevo essa crônica, algumas vezes precisei interromper a digitação para levar as mãos ao rosto e exclamar, em voz alta: "Não! Não, Gregorio! Por que você fez isso, cara?".

DUVIVIER, Gregorio. Vergonha parcelada. Folha de S.Paulo, 6 abr. 2015. Caderno Ilustrada, p. E5.

Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.90-1.

 Fonte da imagem -https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fblog.clubecafe.net.br%2Fvoce-conhece-os-tipos-mais-tradicionais-de-cafezinho%2F&psig=AOvVaw1rx22t8J5d2WeQmqhfemJI&ust=1620944737663000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPDLxPCXxfACFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o texto

1. Nessa crônica de Gregorio Duvivier, não narra um único fato.

a) Responda: quantos e quais fatos são narrados ao longo da crônica?

Há três pequenas histórias contadas: o episódio do café, o táxi no dia de chuva e o esquecimento do nome do amigo.

b) O que parece conectar os fatos narrados uns aos outros?

 A conexão é estabelecida pela ideia geral da crônica, que o cronista propõe discutir: a existência de atitudes que tomamos e das quais nos envergonhamos sempre que nos lembramos delas.

c) Você já passou por experiências semelhantes à apresentada na crônica, a de sentir "vergonhas parceladas"? Em caso afirmativo, relate alguma dessas situações.

Resposta pessoal.

2. Em algumas passagens do texto, o enunciador se mostra explicitamente como um "eu". Releia o trecho a seguir e responda às questões.

“Sofro de uma síndrome comum: a da vergonha parcelada. Algumas situações me causam tanto embaraço que pago por elas a vida inteira. A cada vez que uma vergonha antiga me vem à cabeça, sofro como se fosse a primeira vez que estivesse sofrendo.” (linhas 4-8)

a) Que palavras explicitam o enunciador no trecho acima?

 As formas verbais de primeira pessoa do singular (sofro, pago, sofro, estivesse sofrendo) e o emprego do pronome me.

b) No início da crônica há também marcas que se referem explicitamente ao enunciatário (aquele a quem se destina o texto). Localize-as.

No primeiro parágrafo, a forma verbal de imperativo negativo "não estranhe", o pronome você e a forma verbal vir, exatamente no início do texto: "Não estranhe se você me vir [...]".

c) Em sua opinião, o que justificaria o emprego dessas formas que tornam explícito tanto o enunciador quanto o enunciatário? Que efeito de sentido elas provocam no texto?

Resposta pessoal. Sugestão: Perceber que a expressão tanto do enunciador quanto do enunciatário, por meio de formas linguísticas explícitas, constitui um recurso de linguagem que simula o diálogo, cujo objetivo é aproximar autor e leitores. O efeito de sentido é a aproximação entre os dois, o que gera o convite à reflexão, a partir de situações do cotidiano.

3. Costuma-se dizer que a crônica é um gênero ligado ao relato e à representação de situações do cotidiano. De que forma a crônica de Gregorio Duvivier confirma essa ideia?

Resposta pessoal. Sugestão: É por meio de fatos corriqueiros, como pedir um café, chamar um táxi num dia de chuva e não se lembrar do nome de um antigo conhecido, que o autor da crônica procura levar os leitores a refletir sobre a temática central apresentada: as vergonhas parceladas.

 

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