CRÔNICA: VERGONHA PARCELADA
Gregorio Duvivier
NÃO ESTRANHE se você me vir levando as mãos ao
rosto no meio da rua e gritando comigo mesmo: "Não! Não, Gregorio! Por que
você fez isso, cara?". Sofro de uma síndrome comum: a da vergonha
parcelada. Algumas situações me causam tanto embaraço que pago por elas a vida
inteira. A cada vez que uma vergonha antiga me vem à cabeça, sofro como se
fosse a primeira vez que estivesse sofrendo.
Não parecem vergonhas monumentais, são vergonhas
ridículas - mas é isso o que faz delas monumentais. Exemplo: no aeroporto de
Congonhas, pedi um café. "Carioca?" - a moça perguntou.
"Sou", respondi, achando que ela queria saber minha procedência.
A moça pensou que eu tinha feito uma piadinha
péssima e retribuiu. Tive vontade de me esconder debaixo dos bancos do salão de
embarque pelo simples fato de que alguém no mundo tinha achado que eu era uma
pessoa que faria aquele tipo de piada. Até hoje, só passo em frente à Casa do
Pão de Queijo de Congonhas com uma mochila escondendo o rosto.
Outro dia, chovia a cântaros - deve fazer um bom
tempo, porque faz um bom tempo que não chove a cântaros. Acenava
desesperadamente para os táxis, em frente ao Shopping da Gávea. Eis que um
sujeito surge e começa a fazer o mesmo, alguns passos à minha frente. Todo ser
humano civilizado sabe que, a partir do momento em que uma pessoa acena para os
táxis, os outros candidatos têm que se posicionar atrás dela. Na frente, nunca.
Revoltado, intercedi: "Amigo, desculpa, cheguei antes". Ao que ele
respondeu, humilde: "Tô chamando táxi pra você. Sou segurança do
shopping". E conseguiu um táxi, e abriu a porta pra mim, e eu entrei, e
ele bateu a porta, e junto com a porta se abateu sobre mim o peso da miséria
humana.
Encontrei um amigo de longa data. Não lembrava seu
nome, e ainda hoje não lembro - talvez fosse Marcelo. Consegui disfarçar
chamando o amigo de brother, até que sua
namorada me perguntou: "Há quanto tempo você conhece o Marcelo?".
Respondi: "Desculpa, não sei de quem você tá falando". O Marcelo em
questão, perplexo, me observava com um misto de tristeza pelo esquecimento e
espanto pela minha estupidez.
Enquanto escrevo essa crônica, algumas vezes
precisei interromper a digitação para levar as mãos ao rosto e exclamar, em voz
alta: "Não! Não, Gregorio! Por que você fez isso, cara?".
DUVIVIER, Gregorio. Vergonha parcelada. Folha de
S.Paulo, 6 abr. 2015. Caderno Ilustrada, p. E5.
Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.90-1.
Fonte da imagem -https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fblog.clubecafe.net.br%2Fvoce-conhece-os-tipos-mais-tradicionais-de-cafezinho%2F&psig=AOvVaw1rx22t8J5d2WeQmqhfemJI&ust=1620944737663000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPDLxPCXxfACFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo
o texto
1. Nessa crônica de Gregorio Duvivier, não narra um
único fato.
a) Responda: quantos e quais fatos são narrados ao
longo da crônica?
Há três pequenas histórias contadas: o
episódio do café, o táxi no dia de chuva e o esquecimento do nome do amigo.
b) O que parece conectar os fatos narrados uns aos
outros?
A conexão é estabelecida pela ideia geral da crônica, que o
cronista propõe discutir: a existência de atitudes que tomamos e das quais nos
envergonhamos sempre que nos lembramos delas.
c) Você já passou por experiências semelhantes à
apresentada na crônica, a de sentir "vergonhas parceladas"? Em caso
afirmativo, relate alguma dessas situações.
Resposta pessoal.
2. Em algumas passagens do texto, o enunciador se
mostra explicitamente como um "eu". Releia o trecho a seguir e responda
às questões.
“Sofro de uma síndrome comum: a
da vergonha parcelada. Algumas situações me causam tanto embaraço que pago por
elas a vida inteira. A cada vez que uma vergonha antiga me vem à cabeça, sofro
como se fosse a primeira vez que estivesse sofrendo.” (linhas 4-8)
a) Que palavras explicitam o enunciador no trecho
acima?
As
formas verbais de primeira pessoa do singular (sofro, pago, sofro, estivesse
sofrendo) e o emprego do pronome me.
b) No início da crônica há também marcas que se
referem explicitamente ao enunciatário (aquele a quem se destina o texto).
Localize-as.
No primeiro parágrafo, a forma verbal de
imperativo negativo "não estranhe", o pronome você e a forma verbal
vir, exatamente no início do texto: "Não estranhe se você me vir
[...]".
c) Em sua opinião, o que justificaria o emprego
dessas formas que tornam explícito tanto o enunciador quanto o enunciatário?
Que efeito de sentido elas provocam no texto?
Resposta pessoal. Sugestão: Perceber que
a expressão tanto do enunciador quanto do enunciatário, por meio de formas
linguísticas explícitas, constitui um recurso de linguagem que simula o
diálogo, cujo objetivo é aproximar autor e leitores. O efeito de sentido é a
aproximação entre os dois, o que gera o convite à reflexão, a partir de
situações do cotidiano.
3. Costuma-se dizer que a crônica é um gênero ligado
ao relato e à representação de situações do cotidiano. De que forma a crônica
de Gregorio Duvivier confirma essa ideia?
Resposta pessoal. Sugestão: É por meio de
fatos corriqueiros, como pedir um café, chamar um táxi num dia de chuva e não
se lembrar do nome de um antigo conhecido, que o autor da crônica procura levar
os leitores a refletir sobre a temática central apresentada: as vergonhas
parceladas.
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