domingo, 8 de agosto de 2021

ROMANCE: A PATA DA GAZELA I (FRAGMENTO) - JOSÉ DE ALENCAR - COM GABARITO

 Romance: A PATA DA GAZELA I (Fragmento)

               José de Alencar

        Estava parada na Rua da Quitanda, próximo à da Assembleia, uma linda vitória, puxada por soberbos cavalos do Cabo.

        Dentro do carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez mais linda que sua companheira.

         Estavam ambas elegantemente vestidas e conversavam a respeito das compras que já tinham realizado ou das que ainda pretendiam fazer.

        — Daqui aonde vamos? perguntou a mais baixa, vestida de roxo-claro.

        — Ao escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela Rua do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um roupão cinzento.

        O vestido roxo debruçou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrário àquele em que seguia o carro, enquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevera a nota de suas encomendas.

        — O lacaio ficou-se de uma vez! disse o vestido roxo com um movimento de impaciência.

        — É verdade! respondeu distraidamente a companheira.

Estas palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as senhoras estavam à espera do lacaio, mandado a algum ponto próximo. A impaciência da moça de vestido roxo era partilhada pelos fogosos cavalos, que dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado.

        Depois de alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e, conchegando-se mais às almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem, murmurou:

        — Laura!... Laura!...

        E, como sua amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.

        — O que é, Amélia?

        — Não vês? Aquele moço que está ali defronte nos olhando.

        — Que tem isto? disse Laura sorrindo.

        — Não gosto! replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e sem tirar os olhos de mim?

        — Volta-lhe as costas!

        — Vamos para diante.

        — Como quiseres.

        Avisado o cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior do carro; mas o mancebo não desanimou por isso e, passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a moça com uma admiração franca e apaixonada.

        Simples no traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam nesse moço alguma atenção eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento derramavam pelo semblante de Amélia.

        [...]

        Notando Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego íntimo. Agitava-se impaciente, como uma criatura no meio de um sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo.

        Até que abriu o chapeuzinho-de-sol para interceptar a contemplação apaixonada de que era objeto. Nesta ocasião, Laura, que frequentemente se debruçava para ver quando vinha o lacaio, retraiu o corpo com vivacidade:

        — Enfim; aí vem!

        — Felizmente! disse Amélia.

        O lacaio aproximava-se a passos medidos; trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscilação dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertá-lo de vez em quando.

        Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amélia, tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro:

        — Vamos! vamos!

        Ao aceno que lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitória, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada, foi para o criado, habituado a essa manobra, negócio de um instante. Não percebera ele, porém, que, abrindo-se o papel com a corrida, um dos objetos nele contidos escorregara e, justamente na ocasião de deitar o embrulho na caixa do carro, caíra na calçada.

        Laura, que se inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera um pressentimento do acidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitória, ela debruçou-se ainda uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia caído. Ao mesmo tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade:

        — Como ele manda isto! Por mais que se lhe recomende!

        Laura nada viu, porque já a vitória rodava ligeiramente sobre os paralelepípedos. Nesse momento, porém, dobrando a Rua da Assembleia, se aproximara um moço elegante não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar pelo seu parecer distinto que não tinha usurpado o título.

        O mancebo viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu que um objeto caíra do embrulho. 3 Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhá-lo, nem mesmo deitar-lhe um olhar, se não visse aparecer ao lado da vitória o rosto de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer à melhor sociedade.

        Então apressou-se, para ter ocasião de fazer uma fineza e pretexto de conhecer a senhora, que lhe parecera bonita. Os leões são apaixonadíssimos de tais encontros; acham-lhes um sainete que destrói a monotonia das relações habituais.

        Quando o moço ergueu-se com o objeto na mão, já o carro dobrava a Rua Sete de Setembro. Ficou ele um momento indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma informação a respeito da pessoa a quem pertencia o carro. Sem dúvida a senhora era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse aí feito compras.

        Não obtendo, porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro próximo, resolveu-se a meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.

        [...]

                   ALENCAR, José de. A pata da gazela. Disponível em: https://bit.ly/2PP3NCW. Acesso em: 19 set. 2018.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 50-3.

Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DvB9pJpQj0Yo&psig=AOvVaw271us3Za4h4aQzAy70Objh&ust=1628538443944000&source=images&cd=vfe&ved=0CAsQjRxqFwoTCOCAguSYovICFQAAAAAdAAAAABAE

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Agaloado: bordado com galões (tiras de tecido bordados com fios dourados).

·        Mancebo: Jovem, moço.

·        Sainete: graça.

·        Sofrear: fazer parar ou diminuir a marcha de um cavalo.

·        Vitória: carruagem para dois passageiros, com quatro rodas e cobertura dobrável.

02 – O fragmento do romance lido indica tratar-se de uma história policial, de aventura, de amor ou de terror?

      Indica tratar-se de uma história de amor.

03 – Qual é o foco narrativo desse romance?

      O romance é narrado em terceira pessoa.

04 – No texto, O narrador apresenta uma minuciosa descrição das personagens. Que elementos nos permitem perceber de que classe social as moças fazem parte?

      A descrição da carruagem; a forma como as moças estavam elegantemente vestidas; a conversa delas sobre as compras que já tinham realizado e as que ainda pretendiam fazer; o criado que esperavam. Tudo isso configura personagens de classe social abastada.

05 – Nesse romance, as roupas das personagens são tão importantes na caracterização delas que o narrador substitui o nome das moças pelo traje que portam. Selecione dois exemplos do texto que ilustram essa afirmação e transcreva-os.

      “O vestido roxo debruçou-se de modo a olhar para fora [...]”; “[...] o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças [...]”.

06 – Leia o trecho a seguir, que se refere ao comportamento de Amélia, e responda à questão.

        Notando Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo, que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um desassossego íntimo. [...]”. O que o trecho pode revelar a respeito das características psicológicas da personagem?

      O trecho revela ser a personagem uma moça recatada, de comportamento reservado.

07 – Que atitudes Amélia tomou para se proteger e se esquivar do olhar do rapaz que a admirava?

      Avisou ao cocheiro que avançasse alguns passos, de modo que tirasse o interior do carro da vista do rapaz; abriu o chapeuzinho de sol, para impedir a contemplação apaixonada de que era objeto.

08 – Pelo fragmento lido, é possível identificar a situação-problema que se constrói e será responsável pelo desenvolvimento da história. Indique as alternativas que apresentam os acontecimentos fundamentais que desencadearam essa situação.

a)   O lacaio apressado não percebe que deixa cair, na rua, um objeto do embrulho que carregava.

b)   O cocheiro leva a vitória mais à frente, para tirá-la do foco do olhar do moço apaixonado.

c)   Um jovem interessado apanha o objeto perdido e busca informações sobre sua possível proprietária.

d)   Laura, desconfiada de que algo foi deixado para trás pelo lacaio, olha pela janela da vitória em direção à rua.

e)   O rapaz bem-vestido, não obtendo informações sobre a dona do objeto perdido, guarda-o no bolso.

Alternativas: a, c, d, e.

09 – Que objeto você imagina ter caído do embrulho?

      Resposta pessoal do aluno.

10 – Que ideias e sentimentos você imagina que o jovem bem-vestido terá em relação ao objeto encontrado?

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Ao ver o objeto encontrado, o rapaz tirará algumas conclusões sobre sua proprietária. O que você acha que ele pensará sobre ela? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

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