CRÔNICA: INIMIGOS
Luís Fernando Veríssimo
— Pois a Quequinha…
E a Quequinha, dengosa,
protestava:
— Ora, Beto!
Com o passar do tempo, o
Norberto deixou de chamar a Maria Teresa de Quequinha; se ela estivesse ao seu
lado e ele quisesse se referir a ela, dizia:
— A mulher aqui…
Ou, às vezes:
— Esta mulherzinha…
Mas nunca mais de Quequinha.
(O tempo, o tempo. O amor
tem mil inimigos, mas o pior deles é o tempo. O tempo ataca em silêncio. O
tempo usa armas químicas.)
Com o tempo, Norberto passou
a tratar a mulher por “Ela”.
— Ela odeia o Charles
Bronson.
— Ah, não gosto mesmo.
Deve-se dizer que o
Norberto, a esta altura, embora a chamasse de Ela, ainda usava um vago gesto da
mão para indicá-la. Pior foi quando passou a dizer “essa aí” e apontar com o
queixo.
— Essa aí…
E apontava com o queixo, até curvando a boca com um certo
desdém.
(O tempo, o tempo. O tempo captura o amor e não o mata na
hora. Vai tirando uma asa, depois a outra…)
Hoje, quando quer contar alguma coisa da mulher, o
Norberto nem olha na sua direção. Faz um meneio de lado com a cabeça e diz:
— Aquilo…
(Novas comédias da vida privada. Porto Alegre: L&PM,
1996. p. 70-1.)
Fonte: Livro- Português:
Linguagem, 2/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São
Paulo: Saraiva, 2016.p.321-22.
Entendendo o texto
1. No início do casamento,
Norberto e Maria Teresa tratam-se carinhosamente por Beto e Quequinha. Com o
passar do tempo, entretanto, Beto vai mudando o tratamento dado à mulher: “A
mulher aqui...”, “Esta mulherzinha...”, “Ela”, “Essa aí...” e “Aquilo...”.
Observando a sequência de palavras com as quais ele passa a tratá-la, responda:
a) Que função desempenham
nas frases as palavras que ele usa para se referir à mulher?
A de sujeito.
b) Grande parte dessas
frases tem predicado explícito?
Não.
2. As palavras que o marido emprega para referir-se à
mulher apresentam uma gradação.
a) O diminutivo em Quequinha tem o mesmo valor semântico
que o empregado em mulherzinha?
Não; na primeira palavra, o diminutivo
acrescenta ao substantivo o valor de afeição, carinho; na segunda, tem valor
pejorativo.
b) Na expressão A mulher
aqui, o substantivo mulher foi empregado, de acordo com o contexto, no sentido
de pessoa do sexo feminino, em
oposição a homem, ou em oposição a marido?
Em oposição a homem.
c) Se essa palavra fosse empregada em oposição ao outro
termo, que determinante deveria acompanhá-la?
O pronome possessivo minha.
d) Que atitude o marido demonstra ter em relação à esposa
ao empregar o pronome pessoal ela?
Uma atitude de distanciamento.
e) Como você sabe, os
pronomes demonstrativos transmitem informações sobre a proximidade ou distanciamento
de certo objeto demonstrado em relação ao locutor.
• Ao se referir à mulher, o
locutor primeiramente utiliza o pronome essa e depois o pronome aquilo. O que
essa alteração revela quanto ao relacionamento do casal?
Que marido e
mulher estão gradativamente se distanciando um do outro. Ao empregar essa aí, o
marido ainda considera a esposa um pouco próxima de si, pois esse pronome indica
algo próximo da pessoa com quem se fala. Ao empregar aquilo, que indica algo
distante da pessoa que fala, o locutor mostra o distanciamento dele em relação
à esposa.
• Os demonstrativos neutros
(isto, isso, aquilo) não são normalmente empregados em referência a pessoas. No
entanto, o marido se refere à mulher empregando um deles — aquilo. O que esse fato
revela?
Que a mulher se tornou para ele um objeto
apenas. Nesse contexto, o pronome tem um valor semântico de desprezo,
intolerância, etc.
3. Ao longo dos anos, o marido vai dispensando à mulher
formas de tratamento cada vez mais degradantes. Apesar disso, nas frases a
mulher sempre ocupa a função de sujeito. Como se sabe, o sujeito é um dos
termos essenciais da oração.
a) Existe coerência entre o destaque dado à mulher nas
frases e o destaque que o marido lhe dá no casamento?
Não.
b) O texto procura comprovar
a tese de que o tempo corrói o amor. Considerando o relacionamento entre Maria
Teresa e Norberto, levante hipóteses: Por que o casamento se mantém?
Resposta pessoal.
Sugestão: Embora não exista amor, o casal pode estar mantendo o casamento por
outras razões: por comodismo, pelos filhos, para dar satisfação à sociedade,
etc.
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