domingo, 1 de agosto de 2021

CRÔNICA: DE DOMINGO - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 CRÔNICA: DE DOMINGO

                 Luís Fernando Veríssimo

 — Outrossim…

— O quê?

— O que o quê?

— O que você disse.

— Outrossim?

— É.

— O que é que tem?

— Nada. Só achei engraçado.

— Não vejo a graça.

— Você vai concordar que não é uma palavra de

todos os dias.

— Ah, não é. Aliás, eu só uso domingo.

— Se bem que parece mais uma palavra de segunda-feira.

— Não. Palavra de segunda-feira é “óbice”.

— “Ônus”.

— “Ônus” também. “Desiderato”. “Resquício”.

— “Resquício” é de domingo.

— Não, não. Segunda, no máximo terça.

— Mas “outrossim”, francamente…

— Qual é o problema?

— Retira o “outrossim”.

— Não retiro. É uma ótima palavra. Aliás, é uma palavra difícil de usar. Não é qualquer um

que usa “outrossim”. Tem que saber a hora certa. Além do dia.

— Aliás, uma palavra que uso pouco é “aliás”.

— Pois você não sabe o que está perdendo. “Aliás” é ótimo. Muito bom também é “não

obstante”.

— “Não obstante”! Acho que essa eu nunca usei.

— “Não obstante” é de sábado.

— Quais são as outras palavras de domingo?

— Bem, tem “bel-prazer”.

— “Bel-prazer” é fantástico.

— “Trâmites”, “paulatino” ou “paulatinamente”, “destarte”…

— “Amiúde” é de domingo?

— Não, meio de semana. De domingo é “assaz”.

— Mas o que é que você estava dizendo?

— O que era mesmo? Eu parei no outrossim…

— Não. Eu não aceito outrossim.

— Como, não aceita?

— Não quero. Outrossim, não. Usa outra palavra.

— Mantenho o outrossim.

— Então é fim de papo.

— Você vai me tirar o outrossim da boca? Eu tive um trabalho danado para arranjar uma frase

para encaixar o outrossim e agora não posso usar?

— Pra cima de mim, não.

— Deveras, eu…

— Deveras não!

— Mas deveras é de domingo.

— Não. Retira o deveras. Retira o deveras!

(Novas comédias da vida privada. Porto Alegre: L&PM, 1996. p. 158-9.)

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 2/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016.p.156-157.

Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.portalentretextos.com.br%2Fpost%2Fno-pais-do-outrossim&psig=AOvVaw29_DRE78l8TRgfmAlQugOf&ust=1627906996327000&source=images&cd=vfe&ved=0CAsQjRxqFwoTCJjw6rjoj_ICFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o texto

1.    A crônica é construída com base no diálogo entre duas personagens. O que motiva a discussão entre elas?

A simpatia ou antipatia que elas têm por certas palavras.

2. As personagens mencionam várias palavras de pouco uso. Associe as duas colunas, relacionando as palavras da primeira coluna ao sentido que elas têm:

a) óbice                                        1. realmente, de fato

b) desiderato                                2. bastante, suficientemente

c) resquício                                  3. vontade, capricho

d) outrossim                                 4. empecilho, estorvo

e) não obstante                            5. igualmente, do mesmo modo

f) assaz                                        6. o que se deseja, aspiração

g) deveras                                    7. resto, resíduo

h) bel-prazer                                 8. apesar de, embora

i) amiúde                                      9. com frequência

a-4; b-6; c-7; d-5; e-8; f-2; g-1; h-3; i-9.

 3. As personagens associam as palavras a dias de semana. Releia este trecho:

“— Ah, não é. Aliás, eu só uso [outrossim] domingo.

— Se bem que parece mais uma palavra de segunda-feira.”

No contexto, qual é a diferença entre uma palavra “de domingo” e uma palavra “de segunda - feira”?

Palavra “de domingo” dá a entender uma palavra bonita, especial, que provoca um efeito positivo; já palavra “de segunda-feira“ conota uma palavra feia, pesada, desagradável.

4. Observe estes trechos do texto:

“eu só uso domingo

“uma palavra que eu uso pouco”

“acho que essa eu nunca usei.”

a)   Que advérbios acompanham o verbo usar nesses trechos? Classifique-os, de acordo com o valor semântico que têm no contexto.

          domingo, advérbio de tempo; pouco, advérbio de intensidade; nunca, advérbio de tempo.

b)   Considerando o tema da discussão, o que justifica o emprego de advérbios com esse valor semântico?

Como a discussão gira em torno de quanto e de quando se usam certas palavras, é natural que haja no texto advérbios de intensidade e de tempo.

5. Observe as palavras destacadas nestes trechos:

“Mantenho o outrossim.”

“Retira o deveras.”

“‘Aliás  é ótimo.”

Embora todas elas sejam originalmente advérbios, no contexto desempenham outro papel gramatical.

a)   Qual é esse papel?

O de substantivo.

b)   Justifique sua resposta anterior, levando em conta cada um dos empregos.

          Nos dois primeiros trechos, os advérbios foram substantivados pelo artigo o; no terceiro, aliás tem a função de sujeito, ou seja, uma função nominal.

6. Observe o emprego da palavra deveras neste trecho:

“— Pra cima de mim, não. — Deveras, eu... — Deveras não!”

a)   Levando em conta as intenções dos interlocutores, responda: Qual é o sentido da palavra deveras em cada situação?

Na 1ª situação, a personagem ia comentar, confirmando, o que dissera anteriormente; por isso, tem o sentido de “realmente”, “de fato”. Já na 2ª situação, a outra personagem se refere à palavra deveras, recusando-a, pois provavelmente não gosta dela.

b)   Qual é o papel morfológico da palavra deveras em cada um desses empregos?

Na 1ª situação, é advérbio; na 2ª, é substantivo.

 7. Um advérbio pode exprimir uma circunstância relativa a um verbo e também um ponto de vista a respeito de uma afirmação. No texto, em quais das situações abaixo o advérbio se refere a uma afirmação?

a) “Acho que essa eu nunca usei.”

b) “— Deveras, eu...”

c) “— Mas ‘outrossim’, francamente...”

8. Como conclusão de estudo, assinale a alternativa falsa em relação ao texto lido.

a) O texto tem caráter metalinguístico, uma vez que promove uma reflexão sobre a língua e sobre sua capacidade de produzir sentidos.

b) Há, no texto, um grande número de advérbios, o que se justifica pelo fato de as personagens discutirem quando, como e por que usam certas palavras.

c) O texto revela que o brasileiro conhece mal sua própria língua, pois não domina plenamente o vocabulário e o valor expressivo das palavras.

d) O texto mostra que, embora a língua tenha uma natureza social, o uso que se faz dela envolve escolhas pessoais e subjetivas.

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