CRÔNICA: DE DOMINGO
Luís Fernando Veríssimo
— O quê?
— O que o quê?
— O que você disse.
— Outrossim?
— É.
— O que é que tem?
— Nada. Só achei engraçado.
— Não vejo a graça.
— Você vai concordar que não é uma palavra de
todos os dias.
— Ah, não é. Aliás, eu só uso domingo.
— Se bem que parece mais uma palavra de
segunda-feira.
— Não. Palavra de segunda-feira é “óbice”.
— “Ônus”.
— “Ônus” também. “Desiderato”. “Resquício”.
— “Resquício” é de domingo.
— Não, não. Segunda, no máximo terça.
— Mas “outrossim”, francamente…
— Qual é o problema?
— Retira o “outrossim”.
— Não retiro. É uma ótima palavra. Aliás, é
uma palavra difícil de usar. Não é qualquer um
que usa “outrossim”. Tem que saber a hora
certa. Além do dia.
— Aliás, uma palavra que uso pouco é “aliás”.
— Pois você não sabe o que está perdendo.
“Aliás” é ótimo. Muito bom também é “não
obstante”.
— “Não obstante”! Acho que essa eu nunca
usei.
— “Não obstante” é de sábado.
— Quais são as outras palavras de domingo?
— Bem, tem “bel-prazer”.
— “Bel-prazer” é fantástico.
— “Trâmites”, “paulatino” ou
“paulatinamente”, “destarte”…
— “Amiúde” é de domingo?
— Não, meio de semana. De domingo é “assaz”.
— Mas o que é que você estava dizendo?
— O que era mesmo? Eu parei no outrossim…
— Não. Eu não aceito outrossim.
— Como, não aceita?
— Não quero. Outrossim, não. Usa outra
palavra.
— Mantenho o outrossim.
— Então é fim de papo.
— Você vai me tirar o outrossim da boca? Eu
tive um trabalho danado para arranjar uma frase
para encaixar o outrossim e agora não posso
usar?
— Pra cima de mim, não.
— Deveras, eu…
— Deveras não!
— Mas deveras é de domingo.
— Não. Retira o deveras. Retira o deveras!
(Novas comédias da vida privada. Porto
Alegre: L&PM, 1996. p. 158-9.)
Fonte: Livro- Português: Linguagem, 2/ William Roberto
Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016.p.156-157.
Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.portalentretextos.com.br%2Fpost%2Fno-pais-do-outrossim&psig=AOvVaw29_DRE78l8TRgfmAlQugOf&ust=1627906996327000&source=images&cd=vfe&ved=0CAsQjRxqFwoTCJjw6rjoj_ICFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo o texto
1.
A
crônica é construída com base no diálogo entre duas personagens. O que motiva a
discussão entre elas?
A simpatia ou antipatia que elas têm por certas palavras.
2. As personagens mencionam várias palavras de pouco uso. Associe as duas colunas, relacionando as palavras da primeira coluna ao sentido que elas têm:
a) óbice 1.
realmente, de fato
b) desiderato 2. bastante, suficientemente
c) resquício 3.
vontade, capricho
d) outrossim 4. empecilho, estorvo
e) não obstante 5. igualmente, do mesmo modo
f) assaz 6. o
que se deseja, aspiração
g) deveras 7.
resto, resíduo
h) bel-prazer 8.
apesar de, embora
i) amiúde 9. com frequência
a-4; b-6; c-7; d-5; e-8; f-2; g-1;
h-3; i-9.
“— Ah, não é. Aliás, eu só uso [outrossim]
domingo.
— Se bem que parece mais uma palavra de
segunda-feira.”
No contexto, qual é a diferença entre uma
palavra “de domingo” e uma palavra “de segunda - feira”?
Palavra “de
domingo” dá a entender uma palavra bonita, especial, que provoca um efeito
positivo; já palavra “de segunda-feira“ conota uma palavra feia, pesada,
desagradável.
4. Observe estes
trechos do texto:
“eu só uso domingo”
“uma palavra que eu uso pouco”
“acho que essa eu nunca
usei.”
a)
Que
advérbios acompanham o verbo usar nesses trechos? Classifique-os, de acordo com
o valor semântico que têm no contexto.
domingo, advérbio de tempo; pouco, advérbio
de intensidade; nunca, advérbio de tempo.
b)
Considerando
o tema da discussão, o que justifica o emprego de advérbios com esse valor semântico?
Como a discussão gira em torno de
quanto e de quando se usam certas palavras, é natural que haja no texto
advérbios de intensidade e de tempo.
5. Observe as
palavras destacadas nestes trechos:
“Mantenho o outrossim.”
“Retira o deveras.”
“‘Aliás é ótimo.”
Embora todas elas
sejam originalmente advérbios, no contexto desempenham outro papel gramatical.
a) Qual é esse papel?
O de
substantivo.
b) Justifique sua resposta anterior, levando em conta cada um dos empregos.
Nos dois primeiros trechos, os advérbios
foram substantivados pelo artigo o; no terceiro, aliás tem a função de sujeito,
ou seja, uma função nominal.
6. Observe o emprego
da palavra deveras neste trecho:
“— Pra cima de mim,
não. — Deveras, eu... — Deveras não!”
a) Levando em conta as intenções dos interlocutores, responda: Qual é o sentido da palavra deveras em cada situação?
Na 1ª situação, a personagem ia comentar, confirmando, o que dissera
anteriormente; por isso, tem o sentido de “realmente”, “de fato”. Já na 2ª situação,
a outra personagem se refere à palavra deveras, recusando-a, pois provavelmente
não gosta dela.
b) Qual é o papel morfológico da palavra deveras em cada um desses empregos?
Na 1ª situação, é advérbio; na 2ª, é substantivo.
a) “Acho que essa eu nunca
usei.”
b) “— Deveras,
eu...”
c) “— Mas
‘outrossim’, francamente...”
8. Como conclusão de
estudo, assinale a alternativa falsa em relação ao texto lido.
a) O texto tem
caráter metalinguístico, uma vez que promove uma reflexão sobre a língua e
sobre sua capacidade de produzir sentidos.
b) Há, no texto, um
grande número de advérbios, o que se justifica pelo fato de as personagens discutirem
quando, como e por que usam certas palavras.
c) O texto
revela que o brasileiro conhece mal sua própria língua, pois não domina
plenamente o vocabulário e o valor expressivo das palavras.
d) O texto mostra
que, embora a língua tenha uma natureza social, o uso que se faz dela envolve escolhas
pessoais e subjetivas.
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