domingo, 8 de agosto de 2021

ROMANCE: O CARTEIRO E O POETA(FRAGMENTO) - ANTONIO SKÁRMETA - COM GABARITO

 Romance: O carteiro e o poeta (Fragmento)

                Antonio Skármeta

        – Dom Pablo?...

        – Você fica aí parado como um poste.

        Mário retorceu o pescoço e procurou os olhos do poeta, indo de baixo para cima.

        – Cravado como uma lança?

        – Não, quieto como uma torre de xadrez.

        – Mais tranquilo que um gato de porcelana?

        Neruda soltou o trinco do portão e acariciou o queixo.

        – Mário Jiménez, afora às Odes elementares, tenho livros muito melhores. É indigno que você fique me submetendo a todo tipo de comparações e metáforas.

        – Como é, dom Pablo?!

        – Metáforas, homem!

        – Que são essas coisas?

        O poeta colocou a mão sobre o ombro do rapaz.

        – Para esclarecer mais ou menos de maneira imprecisa, são modos de dizer uma coisa comparando-a com outra.

        – Dê-me um exemplo...

        Neruda olhou o relógio e suspirou.

        – Bem, quando você diz que o céu está chorando. O que é que você quer dizer com isto?

        – Ora, fácil! Que está chovendo, ué!

        – Bem, isso é uma metáfora.

        – E por que se chama tão complicado, se é uma coisa tão fácil?

        – Porque os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou complexidade das coisas. Pela sua teoria, uma coisa pequena que voa não deveria ter um nome tão grande como mariposa. Elefante tem a mesma quantidade de letras que mariposa, é muito maior e não voa – concluiu Neruda, exausto. Com um resto de ânimo indicou ao solícito Mário o rumo da enseada. Mas o carteiro teve a presença de espírito de dizer:

        – Puxa, eu bem que gostaria de ser poeta!

        – Rapaz! Todos são poetas no Chile. É mais original que você continue sendo carteiro. Pelo menos caminha bastante e não engorda. Todos os poetas aqui no Chile são barrigudos. Neruda retomou o trinco do portão e dispunha-se a entrar quando Mário, olhando o voo de um pássaro invisível, disse:

        – É que se eu fosse poeta poderia dizer o que quero.

        – E o que é que você quer dizer?

        – Bom, o problema é justamente esse. Como não sou poeta, não posso dizer.

        [...]

        Neruda apertou os dedos no cotovelo do carteiro e o foi conduzindo até o poste onde havia estacionado a bicicleta.

        – [...] Agora vá para a enseada pela praia e, enquanto você observa o movimento do mar, pode ir inventando metáforas.

        – Dê-me um exemplo!...

        – Olhe este poema: “Aqui na Ilha, o mar, e quanto mar. Sai de si mesmo a cada momento. Diz que sim, que não, que não. Diz que sim, em azul, em espuma, em galope. Diz que não, que não. Não pode sossegar. Chamo-me mar, repete, batendo numa pedra, sem convencê-la. E então, com sete línguas verdes, de sete tigres verdes, de sete cães verdes, de sete mares verdes, percorre-a, beija-a, umedece-a e golpeia-se o peito, repetindo seu nome”.

        Fez uma pausa, satisfeito.

        – O que você acha?

        – Estranho.

        – “Estranho”. Mas que crítico mais severo!

        – Não, dom Pablo. Estranho não é o poema. Estranho é como eu me sentia quando o senhor recitava o poema.

        – Querido Mário, vamos ver se você desenreda um pouco, porque eu não posso passar toda a manhã desfrutando o papo.

        – Como se explica? Quando o senhor dizia o poema, as palavras iam daqui para ali.

        – Como o mar, ora!

        – Pois é, moviam-se exatamente como o mar.

        – Isso é ritmo.

        – Eu me senti estranho, porque com tanto movimento fiquei enjoado.

        – Você ficou enjoado...

        – Claro! Eu ia como um barco tremendo em suas palavras.

        As pálpebras do poeta se despregaram lentamente.

        – “Como um barco tremendo em minhas palavras”.

        – Claro!

        – Sabe o que você fez Mário?

        – O quê?

        – Uma metáfora.

        – Mas não vale, porque saiu só por puro acaso.

        – Não há imagem que não seja casual, filho.


Antonio Skármeta. O Carteiro e o Poeta. Rio de Janeiro: Record, 1996.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 40-2.

Entendendo o romance.

01 – O texto se desenrola quase que integralmente em forma de diálogo entre os personagens, o carteiro e o poeta, mas, ainda assim, há trechos que possibilitam perceber a presença do narrador. Qual o foco narrativo em que foi escrito? Dê um exemplo.

      O foco narrativo é de terceira pessoa. Exemplos: “Neruda apertou os dedos no cotovelo do carteiro e o foi conduzindo até o poste onde havia estacionado a bicicleta.” / “Mário retorceu o pescoço e procurou os olhos do poeta, indo de baixo para cima.” / “As pálpebras do poeta se despregaram lentamente.”

02 – Em que espaço se passa esse trecho da narrativa? Transcreva um trecho do texto que comprove sua resposta.

      Diante da casa do poeta, possivelmente perto de uma praia. Exemplos: “Neruda soltou o trinco do portão e acariciou o queixo.” / “Neruda retomou o trinco do portão e dispunha-se a entrar [...]”. / “Com um resto de ânimo indicou ao solícito Mário o rumo da enseada.” / “Neruda apertou os dedos no cotovelo do carteiro e o foi conduzindo até o poste onde havia estacionado a bicicleta.” / “[...] Agora vá para a enseada pela praia e, enquanto você observa o movimento do mar, pode ir inventando metáforas.”.

03 – Normalmente, o discurso direto, que reproduz na escrita um diálogo, é introduzido por verbos de elocução, como falar, dizer, comentar, perguntar, responder, observar, exclamar, gritar, aconselhar, etc. Mesmo não usando esses verbos, como é possível notar a presença do discurso direto no texto e identificar os personagens a que as falas se referem?

      O discurso direto geralmente é antecedido pelo travessão, que aponta o início da fala de um personagem e quando ocorre mudança de interlocutores. Dessa forma, é possível perceber o discurso direto no texto pelo uso de travessões diante das falas e, pelo conteúdo dessas falas, a quem elas se referem.

04 – No texto, qual definição o poeta dá para a palavra “metáforas”?

      “São modos de dizer uma coisa comparando com outra”.

05 – Diante da estranheza do carteiro ao dizer que a palavra era complicada, embora se referisse a uma coisa tão fácil, Dom Pablo responde-lhe que os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou complexidade das coisas. O que o poeta pretende mostrar ao carteiro com essa afirmação?

      Que não há relação direta entre os nomes das coisas e o que são ou representam.

06 – Em sua opinião, o exemplo que o poeta apresenta torna mais simples o entendimento dessa frase?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – Por que o poeta responde ao carteiro, no final do texto, que “não há imagem que não seja casual? Explique essa afirmação.

      Ele quer dizer que as imagens surgem de maneira natural, não de forma minunciosamente planejada, ou seja, a criação de imagem é espontânea.

08 – O carteiro atribui à expressão “o céu está chorando” o sentido de “está chovendo”. Responda:

a)   Qual dessas expressões foi empregada em sentido figurado?

O céu está chorando.

b)   E qual foi empregada em sentido real, denotativo?

Está chovendo.

 

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