domingo, 29 de agosto de 2021

POEMA: A FAMÍLIA DE OLHOS - MARSHALL BERMAN - COM GABARITO

 Poema: A FAMÍLIA DE OLHOS

Era a tarde de um longo e adorável dia em que eles passaram juntos. Sentaram-se no terraço em frente a um novo café, na esquina de um novo bulevar. O bulevar estava ainda atulhado de detritos, mas o café já exibia orgulhoso seus infinitos esplendores. [...] Enquanto se mantêm sentados e felizes, olhos nos olhos, o casal é surpreendido pelos olhares de outras pessoas. Uma família de pobres, vestida de andrajos – um pai de barba grisalha, um filho jovem e um bebê – para exatamente em frente a eles e observa, embevecida, o brilhante mundo novo lá dentro. As três faces eram extraordinariamente sérias, e aqueles seis olhos contemplavam fixamente o novo café com a mesma admiração, que diferia apenas em função da idade. [...] Os olhos do pai pareciam dizer: “Como isso é belo! Parece que todo o ouro do mundo foi se aninhar nessas paredes”. Os olhos do filho parecem dizer: “Como isso é belo! Mas é um lugar que só pode ser frequentado por pessoas que não são como nós”. Os olhos do bebê estavam demasiado fascinados para expressar qualquer coisa de alegria, estupidez e intensidade. A fascinação dos pobres não tem qualquer conotação hostil; sua visão do abismo entre os dois mundos é sofrida e resignada. Por causa disso, um dos enamorados (o rapaz) começa a sentir-se incomodado e até um pouco envergonhado. Surpreende-se tocado por essa “família de olhos” e sente alguma afinidade com eles. Porém, no momento seguinte, quando volta a olhar para os olhos de sua querida, tentando ler neles os seus próprios pensamentos ela diz: “Essas pessoas de olhos esbugalhados são insuportáveis! Você não poderia pedir ao gerente que os afastasse daqui?” O incidente o deixou triste; agora vê “como é difícil as pessoas se compreenderem umas às outras, como o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas apaixonadas”. Marshall Berman


       Nossa primeira cena primordial emerge em "Os olhos dos pobres" (Spleen, de Paris, nº26).

        Esse poema assume a forma da queixa do apaixonado: o narrador explica à mulher que ama porque ele se sente distante e amargo em relação a ela. Lembra-lhe a experiência que ambos há pouco partilharam. Era a tarde de um longo e adorável dia que eles passaram juntos. Sentaram-se no terraço em frente a um novo café, na esquina de um novo bulevar. O bulevar estava “ainda atulhado de detritos”, mas o café “já exibia orgulhoso seus infinitos esplendores”. O mais alto desses esplendores era um facho de luz nova: “O café estava deslumbrante. Até o gás queimava com o ardor de uma iniciação; com toda a sua energia, iluminava a cegante brancura das paredes, a extensão dos espelhos, as cornijas e as molduras douradas”. Menos deslumbrante era o interior decorado, iluminado pela luz do gás: uma ridícula profusão de Hebes e Ganimedes, sabujos e falcões; “ninfas e deusas arranjando pilhas de frutas, gamos e guloseimas sobre suas cabeças”, uma mistura de “toda a história e toda mitologia, incitando à gula”. Em outras circunstâncias o narrador recuaria diante dessa grosseria comercializada; apaixonado, porém, sorri com afeição e desfruta do seu apelo vulgar – nossa era chamaria a isso Acomodação.

        Enquanto se mantêm sentados e felizes, olhos nos olhos, os amantes são surpreendidos pelos olhares de outras pessoas. Uma família de pobres, vestida de andrajos — um pai de barba grisalha, um filho jovem e um bebê — para exatamente em frente a eles e observa, embevecida, o brilhante mundo novo, lá dentro. “As três faces eram extraordinariamente sérias, e aqueles seis olhos contemplavam fixamente o novo café com a mesma admiração, que diferia apenas em função da idade”. Nenhuma palavra é proferida, todavia o narrador tenta ler os olhos deles. Os olhos do pai parecem dizer: "Como isso é belo! Parece que todo o ouro do mundo foi se aninhar nessas paredes". Os olhos do filho parecem dizer: "Como isso é belo! Mas é um lugar que só pode ser frequentado por pessoas que não são como nós". Os olhos do bebê “estavam demasiado fascinados para expressar qualquer coisa além de alegria, estupidez e intensidade”. A fascinação dos pobres não tem qualquer conotação hostil; sua visão do abismo entre os dois mundos é sofrida, não militante; não ressentida mas resignada. A despeito disso, ou por causa disso, o narrador começa a sentir-se incomodado, “um pouco envergonhado de nossos copos e garrafas, grande demais para a nossa sede”. Surpreende-se “tocado por essa família de olhos" e sente alguma afinidade por eles. Porém, no momento seguinte, quando “eu voltei a olhar para os seus olhos, minha querida, para ler neles meus pensamentos” (o grifo é de Baudelaire), ela diz: "Essas pessoas de olhos esbugalhados são insuportáveis! Você não poderia pedir ao gerente que os afastasse daqui?"

        Eis por que, diz ele, hoje ele a odeia. E acrescenta que o incidente o deixou triste e enraivecido: agora vê "como é difícil para as pessoas se compreenderem umas às outras, como o pensamento é incomunicável” – assim termina o poema – “mesmo entre pessoas apaixonadas". [...]

                           BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 9º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 160-2.

Entendendo o poema:

01 – Qual o significado da palavra Andrajo, no texto?

      Significa trapo, roupa muito velha e rasgada.

02 – Você já presenciou alguma situação semelhante à retratada no poema e enfocada pelo autor da análise? Se a resposta for positiva, comente com os colegas.

      Resposta pessoal do aluno.

03 – No texto que você leu, trechos do poema analisado são intercalados à análise propriamente dita.

a)   De que forma é possível perceber quais partes do texto são trechos do poema?

Os trechos do poema aparecem entre aspas e a linguagem se diferencia um pouco das sequências de análise.

b)   De que maneira o autor retextualiza algumas partes do poema? Explique.

O autor realiza citações, com o texto entre aspas, e faz paráfrases, de forma que a leitura fica mais compreensível para o leitor.

c)   Quais aspectos do poema foram destacados pelo filósofo? Justifique sua resposta.

O preconceito e a exclusão ilustrados pelo poema. Isso pode ser justificado pelo trecho: “Essas pessoas de olhos esbugalhados são insuportáveis! Você não poderia pedir ao gerente que os afastasse daqui?”

d)   De que forma o autor faz referência ao poema ao criar o título para seu texto? Explique-o.

O nome do poema é “Os olhos dos pobres”. Fazendo alusão a esse nome, o texto de Berman é “A família de olhos”, pois é quem usa os olhos para apreciar o belo.

04 – Releia o trecho do texto:

        [...] Sentaram-se no terraço “em frente a um novo café, na esquina de um novo bulevar” [...]. Responda:

a)   Você sabe o que é “bulevar”? Procure o significado dessa palavra no dicionário e registre-o.

Bulevar é uma avenida larga e arborizada.

b)   O que esse cenário revela sobre a condição social do casal do poema?

As avenidas largas e arborizadas em grandes cidades são frequentadas por pessoas de poder econômico mais alto.

05 – Pelo texto “A família de olhos”, é possível determinar o tempo e o espaço em que ocorre a ação relatada no poema analisado?

      Podemos perceber que a história se passa em frente a um elegante café, em um bulevar, e dura apenas alguns minutos.

06 – O poema narrativo analisado retrata dois mundos, duas realidades diferentes.

a)   Explique que realidade são essas e a quais personagens do poema se referem.

A realidade da pobreza, representada pela família que observa o café, e a do conforto material, representada pelo casal de namorados que está na parte interna do café.

b)   Pode-se afirmar que o poema trata de uma situação de discriminação social? Explique.

Sim, porque a mulher queria ver a família humilde fora dali, pois se sentia incomodada com aquelas pessoas de “olhos esbugalhados”. Isso é uma violência e um ato extremo de discriminação social.

07 – De acordo com a análise de Berman, qual foi o sentimento do rapaz e da namorada ao perceberem que estavam sendo observados por uma família de pobres?

      O rapaz se sentiu incomodado e envergonhado, demonstrando compaixão por aquelas pessoas. Já a namorada sentiu outro tipo de incômodo: sentiu-se agredida pelo olhar da família, considerando que aquelas pessoas não deveriam estar ali.

 

 

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