Romance: Grande Sertão: veredas –(fragmento)
João Guimarães Rosa
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar
não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo
no moquém: quem mói no asp’ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me
vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste
gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio.
Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é
barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa
água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito
perigoso...
Explico ao senhor: o diabo vige dentro
do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.
Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O
senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir
posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa
importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e
instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião
compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice,
carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem
espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso
servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é
ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra,
no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...
Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior
pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não...
Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não
dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o
senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada –
motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com
mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma
toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes
pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o
senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma
cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de,
pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião,
corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para
adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim
desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que
estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas
dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue
maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre,
ele está misturado em tudo.
Que o que gasta, vai gastando o diabo
de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor –
compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não
ache. Tudo é e não é ... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito
bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só
que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.
15.
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. p. 11-2.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o
romance, qual o significado das palavras abaixo:
·
Abrenúncio: do latim abrenuntio, interjeição que tem o sentido de
“credo”, “Deus me livre”.
·
Manaíba: do tupi, muda de mandioca.
·
Assisado: que tem siso, juízo; ajuizado.
·
Moquém: grelha feita de varas usada para secar ou assar carne e
peixe.
·
Azougue: do árabe, pessoa muito viva e esperta.
·
Peçonha: veneno.
·
Campear: andar pelo campo, procurar.
·
Carantonho: cara grande e feia.
·
Quicé: do tupi, o mesmo que “faca velha”.
02 – Riobaldo, o narrador,
conta sua história a um interlocutor que está presente, mas cuja voz não se
manifesta explicitamente na narrativa.
a)
Identifique um trecho do texto em que a fala
de Riobaldo leva em conta a presença do interlocutor.
“O senhor vê”; “Explico ao senhor”; etc.
b)
No trecho: “Hem? Hem? Ah. Figuração minha
[...]”, o que o interlocutor deve ter perguntado a Riobaldo?
Deve ter perguntado o que foi que Riobaldo disse. (Riobaldo deve ter
tido uma fantasia e dito “O diabo na rua, no meio do redemunho...”).
03 – Riobaldo afirma que,
antes, quando era jagunço, não tinha tempo para fantasiar, mas agora,
aposentado (de “range rede”), dera para especular ideias. Qual é o assunto que
lhe interessa?
A existência ou não
do demônio.
04 – O excerto lido, embora
narrativo, apresenta uma estrutura dissertativo-argumentativa, isto é, o
narrador desenvolve uma ideia central com argumentos e, no final, chega a uma
conclusão.
a)
Qual é a tese ou ideia central – apresentada
no 2° parágrafo – que o narrador pretende desenvolver?
A de que o diabo vive dentro dos homens (e das coisas), é o lado
sombrio de cada um.
b)
O exemplo da mandioca fundamenta a tese
adequadamente? Por quê?
Sim, pois sendo ela uma mandioca-doce, boa para comer, pode
tornar-se uma mandioca venenosa, o que prova que o mal está dentro das coisas e
das pessoas.
05 – Segundo o 3° parágrafo,
o mal está nas coisas: nas aves, nos animais, nas pedras, está misturado em
tudo.
a)
De acordo com o último parágrafo, o que pode
combater o mal?
O sofrimento e o amor.
b)
“Tudo é e não é ...”. Que sentido tem essa
frase no contexto? Os argumentos expostos fundamentam essa afirmação?
Para o pensamento dialético de Riobaldo, tudo é relativo, depende do
ponto de vista – o que fica claro com o exemplo da cachoeira. Os demais
argumentos também comprovam a relatividade do bem e do mal.
c)
Compare a conclusão com a tese. Há
coincidência ou contradição entre elas?
Há coincidência. Para Riobaldo o diabo vige nos crespos do homem,
isto é, o mal e o bem estão dentro de cada ser.
06 – Não a chega a ficar
claro em Grande sertão se Riobaldo fizera ou não um pacto com o demônio. A
própria personagem tem dúvida se houve ou não o pacto.
a)
Considerando a etapa da vida em que se
encontra Riobaldo, por que essa questão lhe interessa tanto?
Porque, como Riobaldo já tem uma idade avançada, se o demônio
existe, ele em breve levará sua alma.
b)
Pela conclusão a que chega, Riobaldo tem
motivos para continuar se preocupando?
Não, pois, de acordo com a tese da personagem, o diabo não existe
como pessoa, mas se manifesta no lado ruim de cada ser.
c)
Na sua opinião, Riobaldo acredita em seus
próprios argumentos?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez não, pois, se
acreditasse, não teria necessidade de argumentar sobre seu ponto de vista e
querer saber a opinião do interlocutor.
07 – A linguagem
regionalista de Guimarães Rosa é um dos traços da originalidade da obra.
a)
O excerto lido é uma narração oral ou
escrita? Identifique no texto marcas que justifiquem sua resposta.
Trata-se de uma narração oral, conforme as marcas de oralidade: “e
pois?”; “explico”; “Não?”; “Ah”; “Hem? Hem?”; etc.
b)
Com a ajuda do glossário apresentado no final
do texto, comente a linguagem do autor, levando em conta a seleção vocabular, a
estruturação sintática e a melodia das frases.
A linguagem do autor se caracteriza por apresentar um vocabulário de
origem diversa, expressões regionais, prosódia típica do homem sertanejo.