sexta-feira, 22 de abril de 2022

CONTO: NEGÓCIO DE MENINO COM MENINA - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

 Conto: Negócio de menino com menina

            Ivan Ângelo

        O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:

        – Olha que lindo! Compra pra mim?

        O homem parou o carro e chamou:

        – Ô menino.

        O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:

        – Esse passarinho é pra vender?

        – Não senhor.

        O pai olhou para a filha com cara de deixa pra lá. A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:

        – Fala pra ele vender.

        O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:

        – Quanto você quer pelo passarinho?

        – Não tou vendendo, não, senhor.

        A menina ficou decepcionada e segredou:

        – Ah, pai, compra.

        Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor. Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:

        – Dou dez mil.

        – Não senhor.

        – Vinte mil.

        – Vendo não.

        O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.

        – Trinta mil.

        – Não tou vendendo, não, senhor.

        O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha:

        – Ele não quer vender. Paciência.

        A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades de transação:

        – Mas eu queria. Olha que bonitinho.

        O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na manga, o rosto vermelho de sol.

        – Deixa comigo.

        Levantou-se, deu a volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas gretas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:

        – Qual é o nome deste passarinho?

        – Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.

        O homem, quase impaciente:

        – Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sabiá, é o quê?

        – Aaaah. É bico-de-lacre.

        A menina, pela primeira vez, falou com o menino:

        – Ele vai crescer?

        O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.

        – Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.

        O homem:

        – E canta?

        – Canta nada. Só faz chiar assim.

        – Passarinho besta, hein?

        – É. Não presta pra nada, é só bonito.

        – Você pegou ele dentro da fazenda?

        – É. Aí no mato.

        – Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu.

        O menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.

        – Dou quarenta mil! Toma aqui.

        – Não senhor, muito obrigado.

        O homem, meio mandão:

        – Vende isso logo, menino. Não tá vendo que é pra menina?

        – Não, não tou vendendo, não.

        – Cinquenta mil! Toma! – e puxou a gaiola.

        Com cinquenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.

        O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.

        – Quero, não, senhor. Tou vendendo não.

        – Não vende por quê, hein? Por quê?

        O menino, acuado, tentando explicar:

        – É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.

        O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.

        – Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora.

        O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:

        – Amanhã eu dou ele para você.

        Ela sorriu e compreendeu.

ÂNGELO, Ivan. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994. p. 9-11.

Fonte: Livro – PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 5ª Série – 2ª edição - Atual Editora – 2002 – p. 173-6.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Águia (figurado): pessoa de grande talento e perspicácia, notável.

·        Encorajar: dar coragem a, animar, estimular.

·        Greta: fenda, abertura estreita.

·        Hesitante: que hesita, indeciso, vacilante.

·        Intermediário: que está de permeio, que intervém, mediador, árbitro.

·        Maneiro: hábil, jeitoso.

·        Recalcitrante: obstinado, teimoso.

·        Transação: combinação, ajuste, operação comercial.

02 – O texto trata de uma “negociação” entre pessoas de nível social diferente: o menino, de um lado, e o homem e a menina, de outro.

a)   Que dados do texto comprovam que o menino é pobre?

O menino está de pés no chão, sua roupa está encardida e com um rasgo na manga; seus pais, provavelmente, são lavradores na fazenda, empregados do homem que quer comprar o passarinho.

b)   Que dados do texto comprovam que o homem e sua filha são ricos?

O homem é o dono da fazenda, tem carro, mora em São Paulo, trabalha na Bolsa de Valores, vai oferecendo cada vez mais dinheiro ao menino para satisfazer um capricho de sua filha, que provavelmente tem todos os seus desejos satisfeitos.

c)   Supostamente, quem tem mais força para vencer na negociação? Por quê?

O homem, porque pode amedrontar o menino, intimidá-lo, tem poder, é rico, é o dono, o patrão.

03 – Mesmo diante das negativas do menino, a menina insiste em que o pai compre o passarinho. O que esse comportamento revela sobre o tipo de mundo em que ela vive?

      Esse comportamento revela que a menina é mimada e vive num mundo em que o dinheiro pode comprar tudo, satisfazer todos os seus desejos ou caprichos.

04 – O pai, homem experiente no mundo dos negócios, usa estratégias para convencer o menino e, nessas tentativas, vai ficando cada vez mais irritado.

a)   Quais são as primeiras estratégias?

Oferecer dinheiro; primeiro, dez mil; depois, vinte, trinta.

b)   Já desistindo da compra, diante da insistência da filha o pai tenta novamente. Que novas estratégias ele usa?

Ele conversa de forma amistosa com o menino, buscando intimidade, estudando-o como adversário num negócio.

c)   Com que argumento o pai da menina pretendia encerrar a negociação?

Dizendo que tudo na fazenda lhe pertencia.

05 – No final do texto, no auge da irritação, o homem dia à filha: “Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora”.

a)   Podemos comparar o homem do texto com a raposa da fábula “A raposa e as uvas”. Por quê?

Porque, tal como ocorre na fábula, em que a raposa, não conseguindo apanhar as uvas, diz que elas estão verdes, o homem, não conseguindo convencer o menino, diz que ele é ignorante.

b)   O que revela em relação ao menino e à sua gente essa fala do homem?

Revela desprezo; ou que o homem se acha mais importante do que o menino; ou que, para ele, o menino e sua gente não passam de gentalha, são pessoas socialmente inferiores a ele.

06 – O passarinho tem um valor ou um significado diferente para cada uma das personagens.

a)   Que valor o passarinho tem para o pai da menina?

Para o pai da menina, o passarinho tem o valor de mercadoria e, além disso, representa um desafio; porém ele é vencido nesse desafio.

b)   E que valor ele tem para o menino e para a menina?

As crianças querem o passarinho pelo que ele é, para brincar com ele.

07 – Pelo final da história, você acha que o menino deu uma lição na menina e n pai dela? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, pois pai e filha tiveram uma lição de que o dinheiro não compra tudo, de que é preciso respeitar o desejo das outras pessoas, etc.

08 – Observe algumas falas das personagens do texto:

        “— Você pegou ele dentro da fazenda?” (Pai da menina).

        “— Fala pra ele vender.” (Menina).

        “— Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.” (Menino)

a)   Para se comunicar, as personagens usam a variedade padrão da língua ou uma variedade não padrão?

Usam uma variedade não padrão.

b)   Na situação em que eles se encontram – uma conversa entre um adulto e duas crianças –, o uso dessa variedade é adequado? Por quê?

Sim, pois eles estão numa situação informal e apenas um é adulto; a situação não exige o emprego da variedade padrão.

c)   Como você acha que o pai da menina diria a primeira frase se ele estivesse trabalhando na Bolsa?

Provavelmente ele empregaria a variedade padrão. Ficaria assim: Você o pegou dentro da fazenda?

 

 

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