quarta-feira, 13 de abril de 2022

CONTO: NININHO DE ANTÔNIO DE AFONSO - ZÉLIA CAVALCANTI - COM GABARITO

 CONTO: NININHO DE ANTÔNIO DE AFONSO

              Zélia Cavalcanti

    Nininho sou eu. De batismo sou João e de conhecimento sou Nininho de Antônio de Afonso. Antônio que era meu pai, Afonso que era meu avô. Os nomes que a gente vai recebendo na vida.

          De certa feita, fiquei tanto tempo postado aqui nessa beira que o povo saiu dizendo que eu tinha endoidado. Nada. Eu tava na pasmaceira das lembranças da mocidade.

          Água de rio faz assim comigo. Me deixa manso. Me traz recordação do tempo em que andei lá pelas terras de São Paulo. Pela cidade grande. Tempo doido, quando aprendi, de lá de longe, a gostar mais ainda da minha terra, do meu rio, da sombra debaixo da ponte.

           Foi Meu-Tio-Moura quem me guentou um ano e qualquer coisa lá na capital. Tio de verdade, acho que nem era. Só contraparente com casa própria e emprego garantido. Daí que quem se largasse aqui das bandas do Inhambupe pra tentar sorte por lá, levava um anotado que dizia: “Seu Moura – Rua Emerina, 53 – Jabaquara”.

           Antes de ser de maior, nem chegara aos dezessete e ficou acertado que na semana seguinte eu tomava o caminhão de seu Janu. Como não tinha cabeça pra escola, ia tentar a sorte em São Paulo. Era o que meu pai dizia. Não queria que ficasse homem-feito sem profissão. Sem ter do que ganhar a vida, na beira do rio como ele, pescando pra ter do que comer.

          Eu não queria. Tinha medo.

          Ele falou, eu fui.

          Fiquei azoado uns três dias antes de juntar o pouco que tinha de meu, despedir do pai, da mãe e dos manos, e pegar coragem pra subir na boleia do caminhão. Passar pelas roças mais distantes e apanhar os companheiros de viagem. Homem, mulher, criança, velho. Famílias inteiras.

          Dez dias. Em pé, atracado nas grades. Cansava. Sentava nos sacos de farinha de mandioca que seu Janu levava entre os rolos de fumo, a tapioca, os vidros de dendê. Sol a pino. Se chovia a gente abria lona e jogava sobre as traves.

          Era a primeira vez que eu viajava num pau-de-arara. A segunda foi quando voltei pra cá.

         Enquanto o caminho passava pelas rodas do caminhão eu ia pensando, botando a cabeça pra imaginar como era essa tal de São Paulo. Seu Né da farmácia dizia que até a capital era pequena perto dela, mas eu não conseguia acreditar.

           Maior que Salvador da Bahia? Parecia lorota. Mas seu Né não ia inventar, era homem estudado, sabia das coisas, lia nos livros, não ia mentir pra mim.

           Era verdade e eu ia indo.

           Passei toda a viagem calado, acuado num canto, querendo que aquela estrada não acabasse nunca. Vez por outra me subia um frio pela espinha, as pernas ficavam moles, a barriga gasturava.

          Cheguei. Além do chapéu de couro, da alpercata de sola de pneu e da roupa do corpo, o resto dos trens vinha no meu malotão. Daí que Meu-tio-Moura nem precisou alugar um carro. Fomos mesmo de marinete pra casa.

          Fiquei muitos dias sem sair pra rua. Ia só até a ponta da calçada. Tinha medo de me perder naquele mundaréu de cidade!

          [...]

          A casa vivia cheia de gente da gente. Povo que vinha do Norte e trazia farinha, doce cristalizado de cidra, de jenipapo, de caju, de figo miúdo, de araçá-goiaba. A parentada mandava porque sabia que por lá era difícil encontrar dessas coisas que quem é daqui fica triste se não tem. Chegava de um tudo até carne-do-sol, camarão seco, castanha assada na brasa, cocada-puxa.

           Fim de semana sempre parecia de festa. Almoço grande, sábado e domingo.

           Na vitrola, tia botava música que me ajudava a não esquecer dos arrasta-pés aqui da terra. O Rei do Baião Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Almira. Era uma alegria. Parecia que eu tinha saído de casa. A comida cheirava à cozinha de minha avó. Moqueca, vatapá. Cururu pra Cosme e Damião. Sarapatel. Carne-seca com jerimum. Baião-de-dois. Cada domingo uma gostosura.

            [...]

            Vez por outra tinha carta até pra mim. Era a tia Dá quem lia porque eu não me acertava direito com o dizer das letras.

            Ouvindo as notícias do meu povo eu nem dava pó mim, esquecido que tinha ido pra São Paulo me fazer na vida.

             Se fazer na vida! Tá aí uma coisa difícil. De estudo, tinha pouco. De conhecimento na vida, um pouco de motor de caminhão, outro tanto de plantar mandioca, colher e enrolar fumo.

             Olhando meu pai, desde que me entendi por gente, aprendi de um tudo, pouco. Mas, disso tudo, nada me ajudou na cidade grande.

            Já tinha seis meses da minha chegada.

           Tio me pôs pra trabalhar num campo de futebol de time grande, importante. Eu ficava ali apanhando as bolas nos jogos de treino. Fiquei pouco tempo. Arranjaram um outro moleque mais “ligeiro e menos matuto”, disse o diretor.

           Sem emprego, voltei a passar os dias limpando os canteiros do jardinzinho da tia, olhando as brincadeiras dos meninos na rua, preparando as leiras de verdura e cuidando das árvores de frutas que tio mantinha no quintal da casa. Eu gostava de ficar ali dentro do pedaço da minha terra que cabia dentro da cidade grande.

            A lufa-lufa no comércio me punha azoado.

            Se ia cumprir um mandado de tia, mesmo que fosse num lugar bem conhecido, na casa de uma amizade dela ou dos meninos, ia e vinha correndo.

           Quando tinha de ir pelas ruas cheias, seguia as passadas de tio que nem um busca-pé. Nem apreciava os passantes. Nem arriscava o olho nas coisas que as lojas mostravam. Queria logo voltar pra casa. Tinha medo de me perder, de ficar sozinho no meio de tanto desconhecimento.

            Quanto mais o tempo andava mais eu sentia que não ia dar certo pra mim, ficar na cidade grande. Vivia de susto em susto, acanhado, desassossegado.

            Tudo que aprendia, nada que eu via, fazia deixar de pensar na minha terra, na calmaria do rio, na minha beira.

            A cidade grande não me ensinou do trabalho, nem das palavras, nem das riquezas. Do medo que sentia das coisas que não conhecia, aprendi que fui feito homem pra viver aqui, pra roça e pro rio. Pra comer carne-do-sol de manhãzinha, quentar sol na escadaria da igreja, ouvir os causos de seu Pedrito lá na rua do Comércio, trabalhar no que sei e no que posso.

            Tem homem que a vida faz pra viver na cidade grande.

             Não eu.

 

(In: Heloísa Pietro, org. O livro dos medos. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2001)

 

Vieira, Maria das Graças – Ler, entender, criar: Língua portuguesa: 5ª série -manual do professor / São Paulo: Ática, 2005. p.58-63.

 Compreensão do texto

 01. Logo no primeiro parágrafo, Nininho, o narrador-personagem, se apresenta:

“De batismo sou João e de conhecimento sou Nininho de Antônio de Afonso.”

O que você entende pela expressão de conhecimento?

Que o nome pelo qual ele era conhecido por todos era Nininho de Antônio de Afonso.

02. A respeito da cidade onde Nininho morava, responda:

a)   É uma cidade grande ou pequena? Como você chegou a essa conclusão?

Conclui que é uma cidade pequena, já que todos se conhecem pelo nome. Além disso, a reação de Nininho diante do tamanho da cidade de São Paulo revela que ele vivia em um lugar bem menor.

b)   Em que estado brasileiro ela se localiza?

Bahia.

c)   Copie o trecho de onde você tirou essas informações.

“Seu Né da farmácia dizia que até a capital era pequena perto dela [...] Maior que Salvador da Bahia.”

03. Por que Nininho deixou sua cidade e partiu para a cidade grande?

Porque “não tinha cabeça pra escola”, e seu pai não queria que ele se tornasse um adulto sem profissão, pescando para ter o que comer.

04. Leia:

“Era a primeira vez que eu viajava num pau-de-arara”.

a)   O que é um pau-de-arara? Se não conseguirem chegar a uma conclusão, consultem o dicionário.

Caminhão coberto. Com varas longitudinais na carroceria, nas quais os passageiros se seguram. Meio de transporte comumente usado pelos retirantes nordestinos.

 

b)   O que o fato de Nininho ter viajado em um pau-de-arara revela sobre a situação financeira de sua família?

Resposta pessoal.

Sugestão: A família era pobre.

c)   Por que vocês acham que as pessoas viajam nas condições mostradas pelo texto?

Resposta pessoal.

05.  Observe:

“Nininho sou eu.”

a)   Quem é o autor do texto?

Zélia Cavalcanti.

b)   Em que pessoa gramatical o texto está escrito?

Na primeira pessoa do singular.

c)   Quem narra os acontecimentos?

Nininho.

d)   Quem é a principal personagem?

Nininho.

06. Nininho partiu para São Paulo para “se fazer na vida”. Ele conseguiu alcançar esse objetivo? Em que trechos isso fica claro?

Não. “Quando mais o tempo andava [...] desassossegado”; “A cidade grande não me ensinou do trabalho [...] pra roça e pra rio”.

 

07. O que, principalmente, Nininho aprendeu em sua viagem a São Paulo?

Aprendeu a gostar mais ainda de sua terra e que não fora feito para viver na cidade grande.

08. Nininho sentia muito medo na cidade grande. Você costuma sentir medos? Isso impede você de fazer alguma coisa?

Resposta pessoal.

 

 

 

 

 

 

 

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