quarta-feira, 6 de outubro de 2021

CRÔNICA: PSICOPATA AO VOLANTE - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 CRÔNICA: PSICOPATA AO VOLANTE

                    Fernando Sabino

David Neves passava de carro às onze horas de certa noite de sábado por uma rua de Botafogo, quando um guarda o fez parar:

— Seus documentos, por favor.

 Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava: tinha um dos faróis queimado.

— Vou ter de multar– advertiu o guarda.

— Está bem– respondeu David, conformado.

— Está bem? O senhor acha que está bem?

 O guarda resolveu fazer uma vistoria mais caprichada, e deu logo com várias outras irregularidades:

— Eu sabia! Limpador de para-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais coisa, mas para mim já chega. Ou o senhor acha pouco?

— Não, para mim também já chega.

— Vou ter de recolher o carro, não pode trafegar nessas condições.

— Está bem– concordou David.

— Não sei se o senhor me entendeu: eu disse que vou

ter de recolher o carro.

— Entendi sim: o senhor disse que vai ter de recolher o carro. E eu disse que está bem.

— O senhor fica aí só dizendo está bem.

— Que é que o senhor queria que eu dissesse? Respeito sua autoridade.

— Pois então vamos.

— Está bem.

Ficaram parados, olhando um para o outro. O guarda, perplexo: será que ele não está entendendo? Qual é a sua, amizade? E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um tostão. E ali ficariam o resto da noite a se olhar, em silêncio, a autoridade e o cidadão flagrado em delito, se o guarda enfim não se decidisse:

— O senhor quer que eu mande vir o reboque ou prefere levar o carro para o depósito o senhor mesmo?

— O senhor é que manda.

— Se quiser, pode levar o carro o senhor mesmo.

 Sem se abalar, David pôs o motor em movimento:

— Onde é o depósito?

 O guarda contornou rapidamente o carro pela frente, indo sentar-se na boleia:

— Onde é o depósito…O senhor pensou que ia sozinho? Tinha graça!

 Lá foram os dois por Botafogo afora, a caminho do depósito.

— O senhor não pode imaginar o aborrecimento que ainda vai ter por causa disso — o guarda dizia.

— Pois é — David concordava: — Eu imagino.

 O guarda o olhava, cada vez mais intrigado:

— Já pensou na aporrinhação que vai ter? A pé, logo numa noite de sábado. Vai ver que tinha aí o seu programinha para esta noite…E amanhã é Domingo, só vai poder pensar em liberar o carro a partir de Segunda-feira. Isto é, depois de pagar as multas todas…

 — É isso aí– e David o olhou, penalizado: — Estou pensando também no senhor, se aborrecendo por minha causa, perdendo tempo comigo numa noite de Sábado, vai ver que até estava de folga hoje…

 — Pois então? — reanimado, o guarda farejou um entendimento: — Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.

— É isso aí, tudo se arranja. Onde fica mesmo o depósito?

 O guarda não disse mais nada, a olhá-lo, fascinado. De repente ordenou, já à altura do Mourisco:

— Pare o carro! Eu salto aqui.

 David parou o carro e o guarda saltou, batendo a porta, que por pouco não se despregou das dobradiças. Antes de se afastar, porém, debruçou-se na janela e gritou:

— O senhor é um psicopata! 

(Fernando Sabino. A falta que ela me faz. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 94)

Entendendo o texto

01. Qual seria a função social ou intenção da crônica lida?
  (A) informar.                                  (C) relatar memórias.
  (B) entreter/divertir.                       (D) trazer uma reflexão.

02. No trecho “— Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.” A expressão “boa vontade” significa
    (A) propina.                                                   (C) recompensa.
    (B) dinheiro.   
                                               (D) desacato.

 03. Associe conforme o seguinte código

      (A) Apresentação do conflito.                          
      (B) Desenvolvimento do conflito.
      (C) Clímax.
      (D) Desfecho do texto.
    (D) O momento em que o policial sai do carro e xinga o motorista de psicopata.                                           
    (B) As ameaças sucessivas de multar e prender o carro.
    (C) É o momento em que o policial propõe explicitamente  “um
            entendimento”.
    (A) O trecho em que o motorista é parado pelo policial.

04. Marque o vocábulo no qual apresenta ironia.

      (A) “Psicopata ao volante.”
      (B) “... O senhor acha que está bem?”
      (C) “O guarda resolveu fazer uma vistoria mais caprichada,...”
      (D) “Pare o carro! Eu salto aqui.”

 05. O objetivo do texto é

       (A) mostrar a inversão de valores, entre o policial e o motorista.
       (B) mostrar a imprudência no trânsito.
       (C) mostrar o movimento de propina por infratores no trânsito.
       (D) mostrar a vistoria de documentos feito no trânsito.

06. De modo concluído, o tema do texto é

      (A) ética e cidadania.
      (B) propina e suborno.
      (C) autoridade e cidadão flagrado em delito.
      (D) desacato e infração.

 07. Marque o vocábulo em que há registro de informalidade.

       (A) “... quando um guarda o fez parar: ...”
       (B) “... Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…”
       (C) “David parou o carro e o guarda saltou, ...”
       (D) “O guarda o olhava, cada vez mais intrigado: ...”

 08. No trecho “Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava: ...”, de quem é esta fala?

       (A) do motorista.                                (C) do narrador.
       (B) do policial.                                    (D) de outro personagem.

09. O texto apresenta com maior ênfase, um dos recursos de sinalização, muito utilizado em uma conversa

       (A) a reticência.                                  (C) as aspas.
       (B) os dois pontos.                             (D) o travessão.

10. No trecho do texto a seguir “... E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um tostão.” A palavra IMPASSÍVEL pode ser trocada sem perda de sentido por

     (A) tranquilo.                               (C) aborrecido.
     (B) perturbado.                           (D) indiferente.

 

 

 

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