Conto: Os olhos que comiam carne – Parte 2
Humberto de Campos
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando
ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro
d’água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores todos
eram, no seu espírito, causa de novas reflexões. Só agora, depois de cego,
verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através
do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma
pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de
identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e
lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como
seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de
datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe,
amavelmente:
– Está tudo pronto... Vamos para a
mesa... Dentro de oito dias estará bom...
O escritor sorriu, cético. Lido nos
filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não
descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação.
Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se,
assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco,
deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio,
sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.
O processo Platen era constituído por uma
aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o raio X, que punha em contato,
por meio de delicadíssimos fios de “hêmera”, liga metálica recentemente
descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao
globo ocular, a qual, posta em contato direto com a luz, restabelecia integralmente
a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A
verdade era que as publicações europeias faziam, levianamente ou não,
referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim,
e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores
da Humanidade.
Meia hora depois, as portas da sala de
cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte,
voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As
mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a
cabeça envoltos em gaze deixavam à mostra apenas o nariz afilado, e a boca
entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se
achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a
venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo,
pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas
ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas,
palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três
dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu
prestígio que se ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente
aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de
especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a
presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver
o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo
Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados,
apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até
que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido
da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A
emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de
gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel,
espera a sentença final do Destino.
– Abra os olhos! – diz o doutor
O operado, olhos abertos, olha em tomo.
Olha, e, em silêncio, muito pálido, vai-se pondo de pé. A pupila entra em
contato com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê,
em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm
carne: são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam,
caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos
vivos. A sua retina, como os raios X, atravessa o corpo humano e só se detém na
ossatura dos que o cercam, e diante das coisas inanimadas! O médico, à sua
frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam,
giram, afastam-se, aproximam-se, como num bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca
aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor e de pasmo, Paulo
Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o
que enxerga, na multidão de médicos e amigos que o aguardam lá fora, é um
turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se
tivessem aberto um ossário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua.
Recua, lento, de costas, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham
para ele, tentando segurá-lo.
– Afastem-se! Afastem-se! – intima, num
urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as
nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos
ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos
que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam
a vida humana, em torno, num sinistro baile de esqueletos...
CAMPOS, Humberto de et al. Histórias para não
dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009. p. 92-96.
Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino
fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 254-8.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·
Clorofórmio: substância antigamente usada como anestésico.
·
Datiloscopia: registro de impressões digitais.
·
Escabujar: espernear.
·
Inanimado: sem vida.
·
Inerte: imóvel.
·
Inocuidade: inutilidade.
·
Resignação: submissão.
·
Turbilhão: multidão em desordem.
02 – Retome o que você
imaginou a respeito da sequência do texto e responda oralmente:
a) Você achou que o médico curaria Paulo Fernando? Por quê? Sua hipótese se confirmou após a leitura?
Resposta pessoal do aluno.
b) O que o título sugeriu a você sobre o desdobramento do conto? Essa sugestão se confirmou após a leitura?
Resposta pessoal do aluno.
03 – Releia o trecho:
Só
agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas
relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são
inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura
humana pisa de um modo.
CAMPOS, Humberto de
et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009.
p. 92.
a) Após ler o trecho e o boxe sobre discurso indireto livre, transcreva em seu caderno o fragmento desse trecho que apresenta discurso indireto livre.
O fragmento é “Os passos de um estranho são inteiramente diversos
daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um
modo”.
b) Justifique sua resposta.
Não é possível saber se esse fragmento foi dito pelo personagem ou
pelo narrador. Pode tanto ser um pensamento do personagem exemplificando sua
audição aguçada quanto um comentário do narrador. Essa incerteza se deve à
ausência de aspas, verbos como pensou,
refletiu e marcas de 1ª pessoa.
Trata-se, portanto, de um exemplo de discurso indireto livre.
04 – Releia esta frase do
conto e responda:
O
santo estava tão seguro do seu prestígio que se ia embora sem esperar pela
verificação do milagre.
CAMPOS, Humberto de
et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009.
p. 94.
a) A que se referem as palavras santo e milagre?
A palavra santo refere-se
ao doutor alemão e milagre refere-se
ao método cirúrgico inovador criado por ele.
b) Considerando o contexto, explique o emprego dessas palavras.
O método cirúrgico que promete restabelecer a visão de pessoas que
romperam o nervo ótico é considerado, pelo narrador (talvez em tom irônico) um
milagre. E como o autor do método (milagre) é o médico alemão, ele é
considerado santo, afinal acredita-se que santos fazem milagres.
05 – Um dos recursos usados
no texto para criar a atmosfera de terror é a figura de linguagem chamada comparação.
a) Identifique no texto três exemplos de comparação que contribuem para criar essa atmosfera e transcreva-os.
“As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um
morto.”
“A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo.”
“Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como num
bailado macabro!”.
b) A comparação expressa nesses exemplos remete a um elemento comumente associado ao terror? Qual?
Em todos os exemplos, a comparação remete à morte, elemento
comumente associado ao terror.
06 – Releia o trecho:
“[...] Mas essas criaturas não têm
vestimentas, não têm carne: são esqueletos apenas; são ossos que se movem,
tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos
comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios X, atravessa o corpo
humano e só se detém na ossatura dos que o cercam, e diante das coisas
inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão!
Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como num bailado
macabro!”.
CAMPOS, Humberto de et
al. Histórias para não dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009. p.
94-5.
· É correto afirmar que os pontos de exclamação contribuem para a:
a) Descrição de um novo cenário.
b)
Construção do clímax da narrativa.
c) Caracterização psicológica do médico alemão.
d)
Representação do desespero de falas de Paulo
Fernando.
07 – A cirurgia feita pelo
médico alemão em Paulo Fernando foi baseada na aplicação de uma lei chamada
Roentgen, da qual resultaram os raios X.
a) Qual o uso mais comum dos raios X?
Os raios X são usados comumente para registrar a imagem de ossos,
contribuindo, por exemplo, para o diagnóstico de fraturas. Eles atravessam a
carne e são absorvidos apenas pelos ossos, por isso apenas eles são
registrados.
b) Embora o resultado da cirurgia de Paulo Fernando seja impossível na realidade, ele pode ser explicado com base em uma lógica do texto, amparada no uso comum dos raios X. Por quê?
O fato de Pedro Fernando passar a ver apenas os ossos das pessoas
foi, na verdade, um efeito colateral da cirurgia baseada na lei que originou os
raios X. Ele passou a ver como um raio X.
08 – Leia o trecho a seguir
e observe os termos destacados.
“[...] e tomba escabujando no solo,
esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam
carne, e que, devorando macabramente
a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, num sinistro baile de
esqueletos...”.
CAMPOS, Humberto de et
al. Histórias para não dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009. p.
96.
· Sobre esse trecho, indique se elas são verdadeiras (V) ou falsas (F).
(F) Os verbos comer e devorar são
usados no sentido literal.
(V) Apresenta relação direta com o
título do conto.
(V) Descreve uma cena com elementos
de terror.
(F) É parte do conflito do conto.
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