segunda-feira, 11 de outubro de 2021

CONTO: A LIGA DOS CABEÇAS VERMELHAS - ARTHUR CONAN DOYLE - COM GABARITO

 CONTO: A liga dos cabeças vermelhas

         Arthur Conan Doyle

        Um dia de outono do ano passado, ao fazer uma visita a meu amigo Mr. Sherlock Holmes, encontrei-o entretido numa conversa com um cavalheiro de certa idade, muito gordo, rosto vermelho e uma cabeleira cor de fogo. Pedindo desculpas pela intromissão, já me retirava quando Holmes me puxou abruptamente para a sala e fechou a porta atrás de mim.

        — Não poderia ter chegado em melhor hora, meu caro Watson — disse cordialmente.

        — Receei que estivesse ocupado.

        — De fato, estou. E muito.

        — Nesse caso, posso esperar na outra sala.

        — De maneira alguma. Sr. Wilson, este cavalheiro tem sido meu assistente e colaborador em muitos dos meus casos mais bem-sucedidos, não tenho dúvidas de que me será de grande valia também no seu.

        O gordo cavalheiro soergueu-se ligeiramente e fez-me um cumprimento de cabeça, lançando-me uma olhadela inquisitiva com seus olhinhos empapuçados.

        — Acomode-se no canapé — disse-me Holmes, voltando a refestelar-se em sua poltrona e unindo as pontas dos dedos, como era seu costume quando imerso em reflexão. — Sei, meu caro Watson, que você partilha do meu gosto por tudo que é extravagante, que escapa das convenções e da pasmaceira do dia a dia. Mostrou seu gosto por essas coisas com o entusiasmo com que se dispôs a relatar, e, se me permite dizê-lo, a embelezar um pouco, tantas de minhas pequenas aventuras.

        — Seus casos realmente foram do maior interesse para mim.

        — Talvez lembre que comecei outro dia, pouco antes de enfrentarmos aquele problema muito simples apresentado por Miss Mary Sutherland, que, se quisermos encontrar efeitos estranhos e combinações extraordinárias, devemos procurar na própria vida, que vai sempre muito mais longe do que qualquer esforço da imaginação.

        — Uma posição que tomei a liberdade de pôr em dúvida.

        — De fato, doutor, mas terá de concordar comigo, pois do contrário continuarei a impingindo fato sobre fato, até que sua razão desabe sob o peso deles e reconheça que estou certo. Pois bem, Mr. Jabez Wilson, aqui, teve a bondade de recorrer a mim esta manhã e iniciar uma narrativa que promete ser das mais singulares que ouço nos últimos tempos. Você já me ouviu observar que as coisas mais estranhas e insólitas estão muitas vezes associadas não aos maiores, mas aos menores crimes, e às vezes mesmo a casos em que há margem para se duvidar de algum crime propriamente dito foi cometido. Pelo que ouvi até agora não me é possível dizer se o presente caso configura ou não um crime, mas o curso dos acontecimentos está sem dúvida entre os mais incomuns de que já tive notícia. Talvez pudesse fazer a grande gentileza, Mr. Wilson, de recomeçar sua narrativa. Peço-o não apenas porque meu amigo, o Dr. Watson, não ouviu o início, mas também porque a natureza peculiar da história deixa-me ansioso por não ouvir dos seus lábios todos os detalhes possíveis. Em regra, depois de ouvir uma ligeira indicação do curso dos eventos, sou capaz de me orientar com base nos milhares de outros casos semelhantes que me acorrem à memória. Na presente situação, porém, sou obrigado a admitir, em sã consciência, que os fatos parecem inauditos.

        O corpulento cliente estufou o peito, revelando uma ponta de orgulho, e puxou do bolso interno do paletó um jornal sujo e amassado. Enquanto ele passava os olhos pela coluna de anúncios, a cabeça espichava e o jornal alisado sobre os joelhos, dei-lhe uma boa espiada, esforçando-me por detectar, ao estilo de meu companheiro, os indícios que seu traje ou sua aparência poderiam conter.

        Mas minha inspeção não me revelou grande coisa. Nosso visitante tinha todas as características do comerciante britânico banal e mediano; era gordo, presunçoso e bronco. Usava calças bem largas de lã cinza quadriculada, uma sobrecasaca preta cuja limpeza deixava a desejar, desabotoada, e um colete pardacento sobre o qual brilhava uma grossa corrente Albert de latão de que pendia, como um berloque, uma peça de metal quadrada e furada. Em cima de uma cadeira, a seu lado, via-se um desbotado sobretudo marrom, a gola de veludo amassada. No conjunto, por mais que eu olhasse, nada havia de notável no homem, exceto seu cabelo de um ruivo chamejante e uma expressão de extrema consternação e contrariedade estampada no rosto.

        O olhar arguto de Sherlock Holmes percebeu rapidamente do que eu me ocupava, e, sacudiu a cabeça com um sorriso ao notar meu exame atento, comentou: — Além das evidências de que ele trabalhou como operário em alguma época, cheira rapé, é maçom, esteve na China e tem escrito muito ultimamente, não consigo deduzir mais nada.

        Mr. Jabez Wilson teve um sobressalto na sua cadeira; seu dedo indicador estava no jornal, mas os olhos no meu companheiro.

        — Céus! Como ficou sabendo de tudo isso, Mr. Holmes? — perguntou. — Como soube, por exemplo, que fui trabalhador braçal? É a mais perfeita verdade, comecei como carpinteiro de navio.

        — Suas mãos, meu caro senhor. A direita é bem maior que a esquerda. Trabalhou com ela e os músculos são mais desenvolvidos.

        — Mas e o rapé. E a maçonaria?

        — Não insultarei sua inteligência dizendo-lhe como adivinhei isso, especialmente porque, e na verdade contrariando as severas regras de sua ordem, o senhor usa um alfinete de gravata com arco e compasso.

        — Ah! Claro, esqueci-me disso. Mas, e a escrita?

        — Que outra coisa poderia indicar esse seu punho direito com uns doze centímetros tão lustrosos e a manga esquerda puída perto do cotovelo, onde a esfrega na mesa?

        — Bem, e a China?

        — O peixe que tem tatuado logo acima do pulso direito só poderia ter sido feito na China. Fiz um pequeno estudo das tatuagens e cheguei mesmo a contribuir para a literatura sobre o assunto. Essa habilidade de pintar escamas de peixe de um cor-de-rosa delicado é inteiramente peculiar à China. Quando, além disso, vejo uma moeda chinesa pendurada na corrente do seu relógio, a questão se torna ainda mais simples.

        Mr. Jabez Wilson deu uma gargalhada.

        — Vejam só! A princípio pensei que o senhor havia feito algo de extraordinário, mas vejo que, afinal, não foi nada de mais.

        — Começo a achar, Watson — disse Holmes —, que cometo um erro ao explicar. Omne ignotum pro magnifico, você sabe, e minha reputação, já modesta, ficará arruinada se eu continuar sendo tão franco.

        [...]

DOYLE, Arthur Conan. A liga dos cabeças vermelhas. As aventuras de Sherlock Holmes. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro Zahar, 2010.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 177-180.

Entendendo o texto:

01 – Quais são as personagens que aparecem no texto?

      Sherlock Holmes, Watson e Jabez Wilson.

02 – Transcreva um trecho do texto que nos permite imaginar que Sherlock Holmes é um detetive.

      Sr. Wilson, este cavalheiro tem sido meu assistente e colaborador em muitos dos meus casos mais bem-sucedidos, não tenho dúvidas de que me será de grande valia também no seu.” Ou “Pois bem, Mr. Jabez Wilson, aqui, teve a bondade de recorrer a mim esta manhã e iniciar uma narrativa que promete ser das mais singulares que ouço nos últimos tempos. Você já me ouviu observar que as coisas mais estranhas e insólitas estão muitas vezes associadas não aos maiores, mas aos menores crimes, e às vezes mesmo a casos em que há margem para se duvidar de algum crime propriamente dito foi cometido.”

03 – Releia o trecho a seguir:

        “O olhar arguto de Sherlock Holmes percebeu rapidamente do que eu me ocupava, e, sacudiu a cabeça com um sorriso ao notar meu exame atento, comentou: — Além das evidências de que ele trabalhou como operário em alguma época, cheira rapé, é maçom, esteve na China e tem escrito muito ultimamente, não consigo deduzir mais nada.”. Qual era a possível intenção de Sherlock Holmes ao fazer uma análise minuciosa da figura de seu cliente, Jabez Wilson?

      Sherlock quis provar a Wilson que era um bom investigador e, portanto, capaz de desvendar o crime que ele havia lhe contado. Além disso, quis mostrar a Watson que conseguia, sem esforço de imaginação, encontrar evidências sobre a história de vida de seu cliente.

04 – Identifique cada detalhe que Sherlock observou para descobrir os aspectos da vida de seu cliente. Em seguida, indique o que cada detalhe lhe revelou.

      As mãos: a direita era mais desenvolvida que a esquerda, o que lhe permitiu concluir que o cliente trabalhara em serviço pesado utilizando as mãos. Ser maçom: o cliente usava um prendedor de gravata com esquadro e compasso, símbolos da maçonaria. Escrever muito nos últimos tempos: o homem apresentava uma marca lustrosa no punho direito da camisa e outra, puída, no cotovelo esquerdo, demonstrando que se apoiava em uma escrivaninha. Ter estado na China: a tatuagem de peixe no punho, com as escamas coloridas de rosa próprias daquela região, e a confirmação com o uso de moeda chinesa pendurada à corrente. Cheirar rapé: O cheiro que ele exalava.

05 – Além de excelente observador, Sherlock possui outras características que o ajudam a tirar suas conclusões. Quais são elas?

      Além de observador, Sherlock é uma pessoa vivida, que tem experiências: já escreveu um tratado sobre as tatuagens chinesas, conhece os símbolos da ordem da maçonaria, etc. Seus conhecimentos lhe permitem estabelecer relações e tirar conclusões. Ele também domina o método dedutivo, essencial para relacionar os detalhes que observa ao repertório que acumulou.

06 – A expressão latina “Omne ignotum pro magnifico” pode ser traduzida da seguinte forma: “tudo que é ignorado é tido como magnífico”. Baseando-se nessa informação, responda: Por que Sherlock afirma que sua reputação ficará arruinada se ele continuar sendo tão franco?

      Sherlock sabe que, se continuar mostrando para as pessoas como chega às suas conclusões, elas perceberão que seu método não é sobrenatural, mas simples, pois trabalha com a lógica e as evidências.

07 – Releia o primeiro parágrafo do texto e responda: Que marcas textuais nos permitem afirmar que o narrador da história e uma personagem que participa da trama?

      O uso do verbo e dos pronomes pessoais na primeira pessoa do singular: “encontrei-o”, “já me retirava quando Holmes me puxou abruptamente para a sala e fechou a porta atrás de mim”.

08 – Que personagem nos conta a história? Identifique-a e copie o trecho do texto em que o detetive demonstra ter consciência de que essa personagem é a divulgadora de suas aventuras.

      Watson é o narrador das histórias de Sherlock. “— Sei, meu caro Watson, que você partilha do meu gosto por tudo que é extravagante, que escapa das convenções e da pasmaceira do dia a dia. Mostrou seu gosto por essas coisas com o entusiasmo com que se dispôs a relatar, e, se me permite dizê-lo, a embelezar um pouco, tantas de minhas pequenas aventuras.”

09 – Em sua opinião, qual pode ser a intenção de um escritor ao optar pelo foco narrativo em 1ª pessoa?

      Se o foco narrativo está em 1ª pessoa, o leitor lê os fatos narrados como verdadeiros, pois eles foram testemunhados por uma personagem que os vivenciou. Nesse caso, portanto, o modo de ver os fatos restringe-se à visão de uma personagem, que pode ou não contar a verdade dos fatos ao leitor.

10 – Leia estes trechos do texto:

I – “Um dia, no outono do ano passado, ao fazer uma [...]”.

II – “De fato, estou. [...]”.

III – “[...] Peço-o não apenas [...]”.

IV – “Bem, e a China?”.

V – “Suas mãos, meu caro senhor”.

        Quando lemos esses trechos isoladamente, sem nos esquecermos de que foram retirados de um texto, quais deles não podem ser compreendidos? Por quê?

      O primeiro e o terceiro enunciados, pois não apresentam uma ideia completa, não têm sentido completo.

11 – Agora, leia estes outros enunciados:

I – “Vejam só!”.

II – “Mas e a escrita?”.

a)   Eles apresentam sentido completo?

Sim, ambos têm sentido completo.

b)   Observe sua estrutura e indique em que se diferenciam.

O enunciado I possui verbo e o II, não.

 

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