sexta-feira, 15 de outubro de 2021

CONTO: O PÉ DO DIABO(FRAGMENTO) - ARTHUR CONAN DOYLE - COM GABARITO

 CONTO: O pé do diabo

          Arthur Conan Doyle

        [...]

        Foi na primavera de 1897 que a constituição férrea de Holmes mostrou alguns sintomas de esgotamento em face do trabalho árduo e constante de um tipo extremamente opressivo, agravado, talvez, por imprudências ocasionais dele próprio. Em março daquele ano, o Dr. Moore Agar, de Harley Street, cuja dramática apresentação a Holmes posso contar algum dia, ordenou expressamente que o famoso agente particular abandonasse todos os seus casos e se entregasse a um completo repouso se desejasse evitar um colapso total. O estado de sua saúde não era um assunto que despertasse nele próprio o mais leve interesse, pois seu alheamento mental era absoluto, mas finalmente ele foi induzido, sob a ameaça de ficar permanentemente incapacitado para o trabalho, a se proporcionar uma mudança completa de cenário e ares. Foi assim que, no início da primavera daquele ano, encontramo-nos juntos num pequeno chalé perto de Poldhu Bay, na extremidade da península córnica.

        Era um local singular e peculiarmente adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada, no alto de um promontório relvado, contemplávamos todo o sinistro semicírculo da Mounts Bay, aquela antiga armadilha mortal para veleiros, com sua orla de penhascos negros e recifes traiçoeiros, em que muitos homens do mar haviam perdido a vida. Sob uma brisa norte, a baía parecia plácida e abrigada, convidando a embarcação sacudida pela tempestade a entrar em busca de descanso e proteção. Começa então o súbito redemoinho do vento, o vendaval furioso do sudoeste, a âncora pesada, a praia ao abrigo do vento e a última batalha nos vagalhões espumantes. O marinheiro sensato permanece longe desse lugar funesto.

        [...] O encanto e o mistério do lugar, com sua atmosfera sinistra de nações esquecidas, falavam à imaginação do meu amigo, e ele passava grande parte de seu tempo na charneca, em longas caminhadas e solitárias meditações [...], quando de repente, para meu pesar e seu genuíno deleite, encontramo-nos, mesmo naquela terra de sonhos e em nossa própria porta, mergulhados em um problema que parecia mais intenso, mais absorvente e infinitamente mais misterioso que qualquer um dos que nos haviam afastado de Londres. Nossa vida simples, nossa rotina pacata e saudável foram violentamente interrompidas e vimo-nos lançados no meio de uma série de eventos que causaram a mais extrema comoção não apenas na Cornualha, mas em todo o oeste da Inglaterra. Muitos de meus leitores talvez guardem alguma lembrança do que foi chamado na época de “o horror córnico”, embora só um relato extremamente imperfeito do assunto tenha chegado à imprensa de Londres. Agora, passados treze anos, darei ao público os verdadeiros detalhes desse caso inconcebível.

        Como eu disse, as torres espalhadas assinalavam as aldeias que pontilhavam essa parte da Cornualha. A mais próxima delas era o pequeno povoado de Tredannick Wartha, onde as cabanas de uns duzentos habitantes se agrupavam em torno de uma igreja antiga, coberta de musgo. O vigário da paróquia, Mr. Roundhay, era uma espécie de arqueólogo e por isso Holmes travara conhecimento com ele. Era um homem de meia-idade, corpulento e afável, com grande conhecimento das tradições e crenças populares do lugar. A seu convite, havíamos tomado chá no presbitério e conhecêramos também Mr. Mortimer Tregennis, um cavalheiro independente que aumentava os parcos recursos do sacerdote alugando aposentos em sua casa ampla e espalhada. O vigário, sendo um solteirão, apreciava muito esse marmanjo, embora tivesse pouco em comum com seu inquilino, um homem magro, moreno e de óculos, tão encurvado que parecia ter uma deformidade física real. Lembro-me de que, durante nossa curta visita, o vigário nos pareceu loquaz, mas seu inquilino mostrou-se estranhamente reticente, um homem tristonho, introspectivo, que mantinha os olhos desviados de nós, aparentemente ruminando seus próprios negócios.

        Estes foram os dois homens que entraram abruptamente em nossa salinha de estar na terça-feira, 16 de março, pouco depois de tomarmos o desjejum, quando fumávamos juntos, preparando-nos para nossa excursão diária pela charneca.

        “Mr. Holmes”, disse o vigário, alvoroçado, “o fato mais extraordinário e trágico aconteceu durante a noite. É uma história das mais inauditas. Só podemos considerar uma Providência especial que o senhor esteja por acaso aqui neste momento, pois é em toda a Inglaterra o único homem de que precisamos.”

        Fuzilei o importuno vigário com os olhos; Holmes, porém, tirou os cachimbos dos lábios e empertigou-se em sua cadeira como um velho cão de caça que ouve as trombetas. Indicou-lhe o sofá com um gesto, e nosso trêmulo visitante e seu agitado companheiro sentaram-se nele, lado a lado. Mr. Mortimer Tregennis estava mais controlado que o clérigo, mas as contrações de suas mãos e o brilho de seus olhos escuros mostravam que os dois partilhavam a mesma emoção.

        “Quem fala, eu ou o senhor?”, perguntou ele ao vigário.

        “Bem, como o senhor parece ter feito a descoberta, seja ela qual for, e o vigário teve conhecimento dela em segunda mão, talvez seja melhor que fale”, disse Holmes.

        Dei uma olhadela no clérigo vestido às pressas, com o inquilino formalmente vestido sentado a seu lado, e diverti-me com a surpresa que a dedução simples de Holmes produziu em seus semblantes.

        “Talvez seja melhor eu dizer algumas palavras primeiro”, disse o vigário, “depois o senhor poderá decidir se ouvirá os detalhes de Mr. Tregennis, ou se não deveríamos ir depressa, imediatamente, para o cenário desse misterioso acontecimento. Posso explicar, então, que nosso amigo aqui passou o serão, ontem à noite, na companhia de seus dois irmãos, Owen e George, e de sua irmã Brenda, em Tredannick Wartha, a casa deles, que fica perto da velha cruz de pedra na charneca. Ele os deixou, pouco depois das dez horas, jogando cartas em volta da mesa de jantar, em excelente saúde e humor. Costuma acordar cedo, e esta manhã caminhou naquela direção antes do desjejum e foi alcançado pela carruagem do Dr. Richards, que lhe explicou que acabara de receber um chamado de extrema urgência de Tredannick Wartha. Ao chegar à casa, ele encontrou um estado de coisas extraordinário. Seus dois irmãos e a irmã estavam sentados em volta da mesa, exatamente como os deixara, as cartas ainda espalhadas diante deles e as velas queimadas até os bocais. A irmã estava reclinada em sua cadeira, morta, enquanto os dois irmãos, sentados um de cada lado dela, riam, gritavam e cantavam, inteiramente fora de si. Todos três, a mulher morta e os dois dementes, conservavam no rosto uma expressão do mais intenso horror – uma convulsão de terror que era horrível de se ver. Não havia sinal da presença de ninguém na casa, exceto Mrs. Porter, a velha cozinheira e governanta, que declarou que havia dormido profundamente e não ouvira nenhum som durante a noite. Nada fora roubado ou desarrumado, e não há absolutamente nenhuma explicação de qual pode ter sido o horror que matou uma mulher de susto e tirou dois homens fortes de seu juízo. Esta, em resumo, é a situação, Mr. Holmes, e se puder nos auxiliar a elucidá-la terá feito um grande trabalho”. [...]

                         DOYLE, Arthur Conan. O pé do diabo. O último adeus de Sherlock Holmes. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 181-4.

Entendendo o texto:

01 – Como você já sabe, quem narra as aventuras de Sherlock Holmes é seu fiel amigo, Watson, também personagem da história. Trata-se, portanto, de um narrador-personagem. Copie em seu caderno o único trecho que não apresenta as marcas textuais que comprovam a existência de um narrador-personagem.

a)   “Foi na primavera de 1897 que a constituição férrea de Holmes mostrou alguns sintomas de esgotamento em face do trabalho árduo e constante de um tipo extremamente opressivo, agravado, talvez, por imprudências ocasionais dele próprio.”

b)   “Foi assim que, no início da primavera daquele ano, encontramo-nos juntos num pequeno chalé perto de Poldhu Bay, na extremidade da península córnica.”

c)   “Era um local singular e peculiarmente adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada, no alto de um promontório relvado, contemplávamos todo o sinistro semicírculo da Mounts Bay [...]”.

d)   “Como eu disse, as torres espalhadas assinalavam as aldeias que pontilhavam essa parte da Cornualha.”

02 – Por que Holmes saiu de Londres e se mudou temporariamente para um vilarejo distante?

      Porque começou a mostrar sinais de esgotamento diante do trabalho árduo e constante, e seu médico, o Dr. Moore Agar, recomendou-lhe repouso completo para evitar um colapso.

03 – Releia o trecho a seguir e observe a expressão destacada:

        “[...] O encanto e o mistério do lugar, com sua atmosfera sinistra de nações esquecidas, falavam à imaginação do meu amigo, e ele passava grande parte de seu tempo na charneca, em longas caminhadas e solitárias meditações [...], quando de repente, para meu pesar e seu genuíno deleite, encontramo-nos, mesmo naquela terra de sonhos e em nossa própria porta, mergulhados em um problema que parecia mais intenso, mais absorvente e infinitamente mais misterioso que qualquer um dos que nos haviam afastado de Londres.”

·        Por que Watson ficou aborrecido ao perceber que estavam diante de uma situação tão intrigante?

Watson sabia que Holmes, contrariando as ordens médicas, não resistiria ao desafio de desvendar o mistério.

04 – Explique resumidamente qual é o mistério a ser desvendado nessa narrativa de enigma.

      Desvendar o que pode ter provocado a morte da irmã de Mr. Tregennis e horrorizado tanto seus irmãos a ponto de deixá-los fora de si.

05 – Releia este trecho descritivo do texto:

        “Era um local singular e peculiarmente adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada, no alto de um promontório relvado, contemplávamos todo o sinistro semicírculo da Mounts Bay, aquela antiga armadilha mortal para veleiros, com sua orla de penhascos negros e recifes traiçoeiros, em que muitos homens do mar haviam perdido a vida. Sob uma brisa norte, a baía parecia plácida e abrigada, convidando a embarcação sacudida pela tempestade a entrar em busca de descanso e proteção. Começa então o súbito redemoinho do vento, o vendaval furioso do sudoeste, a âncora pesada, a praia ao abrigo do vento e a última batalha nos vagalhões espumantes. O marinheiro sensato permanece longe desse lugar funesto.

·        Em seu caderno, transcreva as palavras ou expressões utilizadas para caracterizar os seguintes elementos destacados no trecho:

A casinha – caiada.

A armadilha – antiga e mortal para veleiros.

A âncora – pesada.

O promontório – relvado.

Os penhascos – negros.

O lugar – funesto.

O semicírculo da baía Mounts Bay – sinistro.

Os recifes – traiçoeiros.

O redemoinho de vento – súbito.

O vendaval – furioso.

06 – A que classe gramatical pertencem as palavras e expressões que você transcreveu?

      À classe dos adjetivos e das locuções adjetivas.

07 – Em sua opinião, qual pode ter sido a intenção do autor ao usar essas palavras e expressões para caracterizar os elementos que compõem a cena?

      Resposta pessoal do aluno. Espera-se que o aluno perceba que a escolha dos adjetivos e das locuções adjetivas contribui para o envolvimento do leitor em um clima de mistério, confirmando o fato de o caso ser “infinitamente misterioso” e, assim, despertando sua curiosidade.

 

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