CONTO: O pé do diabo
Arthur Conan Doyle
[...]
Foi na primavera de 1897 que a
constituição férrea de Holmes mostrou alguns sintomas de esgotamento em face do
trabalho árduo e constante de um tipo extremamente opressivo, agravado, talvez,
por imprudências ocasionais dele próprio. Em março daquele ano, o Dr. Moore
Agar, de Harley Street, cuja dramática apresentação a Holmes posso contar algum
dia, ordenou expressamente que o famoso agente particular abandonasse todos os
seus casos e se entregasse a um completo repouso se desejasse evitar um colapso
total. O estado de sua saúde não era um assunto que despertasse nele próprio o
mais leve interesse, pois seu alheamento mental era absoluto, mas finalmente
ele foi induzido, sob a ameaça de ficar permanentemente incapacitado para o
trabalho, a se proporcionar uma mudança completa de cenário e ares. Foi assim
que, no início da primavera daquele ano, encontramo-nos juntos num pequeno
chalé perto de Poldhu Bay, na extremidade da península córnica.
Era um local singular e peculiarmente
adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada,
no alto de um promontório relvado, contemplávamos todo o sinistro semicírculo
da Mounts Bay, aquela antiga armadilha mortal para veleiros, com sua orla de
penhascos negros e recifes traiçoeiros, em que muitos homens do mar haviam
perdido a vida. Sob uma brisa norte, a baía parecia plácida e abrigada,
convidando a embarcação sacudida pela tempestade a entrar em busca de descanso
e proteção. Começa então o súbito redemoinho do vento, o vendaval furioso do
sudoeste, a âncora pesada, a praia ao abrigo do vento e a última batalha nos
vagalhões espumantes. O marinheiro sensato permanece longe desse lugar funesto.
[...] O encanto e o mistério do lugar,
com sua atmosfera sinistra de nações esquecidas, falavam à imaginação do meu
amigo, e ele passava grande parte de seu tempo na charneca, em longas caminhadas
e solitárias meditações [...], quando de repente, para meu pesar e seu genuíno
deleite, encontramo-nos, mesmo naquela terra de sonhos e em nossa própria
porta, mergulhados em um problema que parecia mais intenso, mais absorvente e
infinitamente mais misterioso que qualquer um dos que nos haviam afastado de
Londres. Nossa vida simples, nossa rotina pacata e saudável foram violentamente
interrompidas e vimo-nos lançados no meio de uma série de eventos que causaram
a mais extrema comoção não apenas na Cornualha, mas em todo o oeste da
Inglaterra. Muitos de meus leitores talvez guardem alguma lembrança do que foi
chamado na época de “o horror córnico”, embora só um relato extremamente
imperfeito do assunto tenha chegado à imprensa de Londres. Agora, passados
treze anos, darei ao público os verdadeiros detalhes desse caso inconcebível.
Como eu disse, as torres espalhadas
assinalavam as aldeias que pontilhavam essa parte da Cornualha. A mais próxima
delas era o pequeno povoado de Tredannick Wartha, onde as cabanas de uns
duzentos habitantes se agrupavam em torno de uma igreja antiga, coberta de
musgo. O vigário da paróquia, Mr. Roundhay, era uma espécie de arqueólogo e por
isso Holmes travara conhecimento com ele. Era um homem de meia-idade,
corpulento e afável, com grande conhecimento das tradições e crenças populares
do lugar. A seu convite, havíamos tomado chá no presbitério e conhecêramos
também Mr. Mortimer Tregennis, um cavalheiro independente que aumentava os
parcos recursos do sacerdote alugando aposentos em sua casa ampla e espalhada.
O vigário, sendo um solteirão, apreciava muito esse marmanjo, embora tivesse
pouco em comum com seu inquilino, um homem magro, moreno e de óculos, tão
encurvado que parecia ter uma deformidade física real. Lembro-me de que,
durante nossa curta visita, o vigário nos pareceu loquaz, mas seu inquilino
mostrou-se estranhamente reticente, um homem tristonho, introspectivo, que
mantinha os olhos desviados de nós, aparentemente ruminando seus próprios negócios.
Estes foram os dois homens que entraram
abruptamente em nossa salinha de estar na terça-feira, 16 de março, pouco
depois de tomarmos o desjejum, quando fumávamos juntos, preparando-nos para
nossa excursão diária pela charneca.
“Mr. Holmes”, disse o vigário,
alvoroçado, “o fato mais extraordinário e trágico aconteceu durante a noite. É
uma história das mais inauditas. Só podemos considerar uma Providência especial
que o senhor esteja por acaso aqui neste momento, pois é em toda a Inglaterra o
único homem de que precisamos.”
Fuzilei o importuno vigário com os
olhos; Holmes, porém, tirou os cachimbos dos lábios e empertigou-se em sua
cadeira como um velho cão de caça que ouve as trombetas. Indicou-lhe o sofá com
um gesto, e nosso trêmulo visitante e seu agitado companheiro sentaram-se nele,
lado a lado. Mr. Mortimer Tregennis estava mais controlado que o clérigo, mas
as contrações de suas mãos e o brilho de seus olhos escuros mostravam que os
dois partilhavam a mesma emoção.
“Quem
fala, eu ou o senhor?”, perguntou ele ao vigário.
“Bem, como o senhor parece ter feito a
descoberta, seja ela qual for, e o vigário teve conhecimento dela em segunda
mão, talvez seja melhor que fale”, disse Holmes.
Dei uma olhadela no clérigo vestido às
pressas, com o inquilino formalmente vestido sentado a seu lado, e diverti-me
com a surpresa que a dedução simples de Holmes produziu em seus semblantes.
“Talvez seja melhor eu dizer algumas
palavras primeiro”, disse o vigário, “depois o senhor poderá decidir se ouvirá
os detalhes de Mr. Tregennis, ou se não deveríamos ir depressa, imediatamente, para
o cenário desse misterioso acontecimento. Posso explicar, então, que nosso
amigo aqui passou o serão, ontem à noite, na companhia de seus dois irmãos,
Owen e George, e de sua irmã Brenda, em Tredannick Wartha, a casa deles, que
fica perto da velha cruz de pedra na charneca. Ele os deixou, pouco depois das
dez horas, jogando cartas em volta da mesa de jantar, em excelente saúde e
humor. Costuma acordar cedo, e esta manhã caminhou naquela direção antes do
desjejum e foi alcançado pela carruagem do Dr. Richards, que lhe explicou que
acabara de receber um chamado de extrema urgência de Tredannick Wartha. Ao
chegar à casa, ele encontrou um estado de coisas extraordinário. Seus dois
irmãos e a irmã estavam sentados em volta da mesa, exatamente como os deixara,
as cartas ainda espalhadas diante deles e as velas queimadas até os bocais. A
irmã estava reclinada em sua cadeira, morta, enquanto os dois irmãos, sentados
um de cada lado dela, riam, gritavam e cantavam, inteiramente fora de si. Todos
três, a mulher morta e os dois dementes, conservavam no rosto uma expressão do
mais intenso horror – uma convulsão de terror que era horrível de se ver. Não
havia sinal da presença de ninguém na casa, exceto Mrs. Porter, a velha cozinheira
e governanta, que declarou que havia dormido profundamente e não ouvira nenhum
som durante a noite. Nada fora roubado ou desarrumado, e não há absolutamente nenhuma
explicação de qual pode ter sido o horror que matou uma mulher de susto e tirou
dois homens fortes de seu juízo. Esta, em resumo, é a situação, Mr. Holmes, e
se puder nos auxiliar a elucidá-la terá feito um grande trabalho”. [...]
DOYLE, Arthur Conan. O pé
do diabo. O último adeus de Sherlock Holmes. Tradução de Maria Luiza X. de A.
Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 181-4.
Entendendo o texto:
01 – Como você já sabe, quem
narra as aventuras de Sherlock Holmes é seu fiel amigo, Watson, também
personagem da história. Trata-se, portanto, de um narrador-personagem. Copie em
seu caderno o único trecho que não apresenta as marcas textuais que comprovam a
existência de um narrador-personagem.
a)
“Foi na primavera de 1897 que a
constituição férrea de Holmes mostrou alguns sintomas de esgotamento em face do
trabalho árduo e constante de um tipo extremamente opressivo, agravado, talvez,
por imprudências ocasionais dele próprio.”
b)
“Foi assim que, no início da primavera
daquele ano, encontramo-nos juntos num pequeno chalé perto de Poldhu Bay, na
extremidade da península córnica.”
c)
“Era um local singular e peculiarmente
adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada,
no alto de um promontório relvado, contemplávamos todo o sinistro semicírculo
da Mounts Bay [...]”.
d)
“Como eu disse, as torres espalhadas
assinalavam as aldeias que pontilhavam essa parte da Cornualha.”
02 – Por que Holmes saiu de
Londres e se mudou temporariamente para um vilarejo distante?
Porque começou a
mostrar sinais de esgotamento diante do trabalho árduo e constante, e seu
médico, o Dr. Moore Agar, recomendou-lhe repouso completo para evitar um
colapso.
03 – Releia o trecho a
seguir e observe a expressão destacada:
“[...] O encanto e o mistério do lugar,
com sua atmosfera sinistra de nações esquecidas, falavam à imaginação do meu
amigo, e ele passava grande parte de seu tempo na charneca, em longas
caminhadas e solitárias meditações [...], quando de repente, para meu pesar e seu genuíno
deleite, encontramo-nos, mesmo naquela terra de sonhos e em nossa própria
porta, mergulhados em um problema que parecia mais intenso, mais absorvente e
infinitamente mais misterioso que qualquer um dos que nos haviam afastado de
Londres.”
· Por que Watson ficou aborrecido ao perceber que estavam diante de uma situação tão intrigante?
Watson sabia que Holmes, contrariando as ordens médicas, não
resistiria ao desafio de desvendar o mistério.
04 – Explique resumidamente
qual é o mistério a ser desvendado nessa narrativa de enigma.
Desvendar o que
pode ter provocado a morte da irmã de Mr. Tregennis e horrorizado tanto seus
irmãos a ponto de deixá-los fora de si.
05 – Releia este trecho
descritivo do texto:
“Era um local singular e peculiarmente
adequado ao humor soturno de meu paciente. Das janelas de nossa casinha caiada, no alto de um promontório relvado,
contemplávamos todo o sinistro semicírculo
da Mounts Bay, aquela antiga armadilha
mortal para veleiros, com sua orla de penhascos
negros e recifes traiçoeiros,
em que muitos homens do mar haviam perdido a vida. Sob uma brisa norte, a baía
parecia plácida e abrigada, convidando a embarcação sacudida pela tempestade a
entrar em busca de descanso e proteção. Começa então o súbito redemoinho do vento, o vendaval furioso do sudoeste, a âncora pesada, a praia ao abrigo
do vento e a última batalha nos vagalhões espumantes. O marinheiro sensato
permanece longe desse lugar
funesto.
· Em seu caderno, transcreva as palavras ou expressões utilizadas para caracterizar os seguintes elementos destacados no trecho:
A casinha – caiada.
A armadilha – antiga e mortal para veleiros.
A âncora – pesada.
O promontório – relvado.
Os penhascos – negros.
O lugar – funesto.
O semicírculo da baía Mounts
Bay – sinistro.
Os recifes – traiçoeiros.
O redemoinho de vento – súbito.
O vendaval – furioso.
06 – A que classe gramatical
pertencem as palavras e expressões que você transcreveu?
À classe dos
adjetivos e das locuções adjetivas.
07 – Em sua opinião, qual
pode ter sido a intenção do autor ao usar essas palavras e expressões para
caracterizar os elementos que compõem a cena?
Resposta pessoal
do aluno. Espera-se que o aluno perceba que a escolha dos adjetivos e das
locuções adjetivas contribui para o envolvimento do leitor em um clima de
mistério, confirmando o fato de o caso ser “infinitamente misterioso” e, assim,
despertando sua curiosidade.
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