domingo, 10 de outubro de 2021

CRÔNICA: DEUS SABE O QUE FAZ! (FRAGMENTO: O ALIENISTA) - MACHADO DE ASSIS

 CRÔNICA: DEUS SABE O QUE FAZ(FRAGMENTO: O ALIENISTA)

                       Machado de Assis

  A ilustre dama, ao fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reprove, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

– Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto – os olhos, que eram a sua feição mais insinuante – negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. [...]

– Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. [...] Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. [...]

– Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! Suspirou D. Evarista sem convicção.

– Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era um via-láctea de algarismos.

E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista* fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

– Quem diria que meia dúzia de lunáticos...

* médico especialista em doenças mentais.

ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. São Paulo: Escala Educacional, 2008. Fragmento.

 Entendendo o texto

01.O termo destacado em “Era uma via-láctea de algarismos.” (ℓ. 33) assume, nesse texto, o sentido de

A) beleza.

B) disposição.

C) luminosidade.

D) organização.

E) quantidade.

 02. Dona Evarista se sentia abandonava pelo marido e culpava quem?

     Culpava “essa meia dúzia de loucos”.

 03. O que aconteceu para que Dona Evarista mudasse de humor?

         O marido disse: – Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

04. Bacamarte revelou então a fortuna que havia acumulado com a renda da Casa Verde e Dona Evarista passou a agradecer “essa meia dúzia de loucos”, afirmando o quê?

  “Deus sabe o que faz”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário