Conto: Exercício para
Nathalie Lourenço
Existe uma foto que sempre me fazia
chorar. São duas crianças
de etnias inimigas, mas quase não se vê
qual é
qual, pois as duas estão cobertas de fuligem,
sentadas sobre uns escombros e vestidas apenas com fraldas e sapatinhos. Quem
tirou essa foto fui eu. Depois, ela estamparia capas de jornais do mundo todo,
ganharia prêmios, me tiraria do nada e me levaria a ser
uma das fotógrafas mais procuradas do meio. Nunca foi
nada disso que fazia despertar tremores e inundações
dentro de mim, e sim a mesma coisa indefinível
que me levou a fazer o clique. Uma penugem de cinzas cobrindo os cílios
das crianças. A forma que suas mãozinhas
se entrelaçavam, sem saber que tinham nascido para se
odiar. A vida que continua no meio de um mundo destroçado.
Essa foto (chama-se Castor e Pólux)
foi impressa em um painel de 3 metros de altura. Eu fiquei de frente para ela
na exposição em minha homenagem organizado pela fundação de
Janus e, pela primeira vez em mais de 30 anos, os meus olhos permaneceram
secos. Doutor Kobayashi disse que a perda gradual da emotividade é um
sintoma comum de quem usa há muito tempo o CyberCortex:
o cérebro
artificial tem dificuldade para sinalizar a produção de
endorfinas. Assim, pediu que eu fizesse alguns exercícios.
Exercício
para tristeza
Faça um
prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
Ao esquentá-lo
novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se
perdeu.
Pense sobre isso por dois minutos.
Hoje vou tomar um café com
Janus. Impossível não
associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera
no pescoço.
Ninguém
entende melhor as zonas de guerra do que ele.
O medo nunca passa nas zonas de guerra.
Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você
precisa se concentrar no que está a
sua frente, no visor da câmera, e pode não
perceber algo importante, como um estilhaço ou
uma bala vindo em direção à sua
cabeça.
Graças
ao medo, fui uma das primeiras a fazer o download de memórias
para a tecnologia do CyberCortex, em uma época
em que isso ainda era considerado excêntrico
e antinatural. Hoje, apenas um louco faria o que eu e Janus fazíamos
sem antes fazer um upload cerebral completo. Hoje, apenas Janus continua a fazê-lo.
Eu não. E
quando o estilhaço veio, morte cerebral não
significava mais morte. Na volta, foi difícil
me acostumar. Caía muito. A maior diferença é o
peso da cabeça. Um chip não
pesa muito, mesmo com a espuma de alta densidade que é
usada para que a cabeça não
fique – literalmente – oca.
Era perigoso, e eu era inconsequente.
Janus arranjou trabalhos freelance para mim em revistas de notícia
e de moda, mas não era isso que eu queria
fazer. Em pouco tempo estava de volta às
trincheiras. Sei que perdi o equilíbrio
perto de um campo minado por causa das pernas cibernéticas
que uso hoje. Mandei que deletassem a memória
do meu HD, por causa do stress pós-traumático.
Assim, a única lembrança
que tenho desse momento é uma foto tirada sem querer,
por um dedo crispado de dor, um borrão
85% terra e 15% céu.
Meus arquivos saltam diretamente para o
momento que acordei na ala de BioTech do hospital. Janus está lá, o
que me preocupou de imediato. Seu contrato previa ainda 2 meses no campo de
refugiados. Ele explicou sobre o funcionamento dos joelhos mecânicos,
primeiro receoso, mas logo voltou a ser ele mesmo, brincando que eu sempre tive
umas belas dumas pernas e que agora elas seriam eternas. Se gabou de ter feito
com que fossem modeladas a partir de umas fotos de quando eu tinha 25 anos. As
duas longas traquitanas se dobram de forma involuntária
quando eu começo a rir.
Exercício
para amor
Escolha uma parte pequena de uma
pessoa à sua
escolha.
Observe detalhes como: uma dobra
da orelha, a forma que as cores se alteram na borda das pupilas. Não
pare até
encontrar a beleza insuportável que há
nisto.
Janus está
atrasado para nosso café. Peço
mais um duplo, correndo o risco de desregular o PH do meu estômago
químico.
Passam-se duas horas, e nada de Janus. Envio mensagens para seu aparelho
pessoal e para o serviço de nanomensagens. É
desagradável,
mas faço
uma ligação
para sua casa, torcendo que sua nova esposa não atenda,
e sim um Janus esquecido e de pijamas. Segundo Vivian, ele saiu há
mais de duas horas. Saio do café e caminho no ar gelado da
rua. De costas, algumas pessoas se parecem com ele, mas apenas de costas. De
frente, vemos os vidros e as chapas metálicas,
os braços
mecânicos
e unhas microchipadas. Apenas Janus é
todo carne e obsolescência. Recebo uma ligação de
Lóris,
da exposição, pedindo que eu vá
para lá o
quanto antes.
É dia de semana, e às
17h, há
quase ninguém no hall. Distingo logo a figura de Janus,
pequeno contra a gigantesca reprodução de
Castor e Pólux. Lóris
está ao
seu lado e diz em voz tranquilizadora Está
Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui, e ele se cala e me
mede com os olhos gelatinosos, os mesmos olhos com que nasceu, e pelo modo que
abre e fecha boca, vejo que não sabe quem eu sou. Abana a
cabeça e,
sem dizer palavra, ergue os olhos para as duas crianças
titânicas,
cobertas de cinza e desamparo.
Ainda
não consigo chorar.
LOURENÇO, Nathalie.
Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira.
Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php.
Acesso em: 27 fev. 2019.
Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino
fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 34-40.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·
Endorfinas: neurotransmissor
produzido pelo corpo humano cuja elevação reduz a ansiedade, os sintomas de
depressão e o apetite.
·
Titânica: adjetivo utilizado
para caracterizar algo grande e forte; relativo a titãs, divindades clássicas
que enfrentaram Zeus.
·
Traquitanas: engrenagem; módulo
móvel de ferro para sustentação e deslocamento.
02 – Retorne o que pensou a respeito do título da narrativa e responda
por que o título parece estar incompleto?
Resposta pessoal do aluno.
03 – Antes de ler o texto, você levantou hipóteses sobre os exercícios
mencionados. O que você havia imaginado se confirmou após a leitura do texto?
Resposta pessoal do aluno.
04 – No início do conto, a personagem descreve uma fotografia que
retrata uma questão social.
a) Qual é a questão social retratada?
A imagem retrata duas crianças, de etnias inimigas,
cobertas por poeira de escombros.
b) Em que cenário a foto tirada por Cali foi ambientada?
Provavelmente em uma guerra entre duas etnias num
futuro não datado.
c) O retrato fotográfico criado pela narradora tem um nome e faz referência a uma figura mítica. Qual?
A foto recebe o título de “Castor e Pólux” e faz
referência aos irmãos por parte de mãe Castor e Pólux, personagens da mitologia
grega, mas apenas o segundo é filho de Zeus e, portanto, imortal. Diante de um
conflito, Pólux divide sua imortalidade com Castor para que permaneçam juntos
para sempre. Ela foi utilizada como título da foto, provavelmente, para marcar
a fraternidade entre as duas crianças, que, mesmo sendo de etnias diferentes,
estavam ligadas como irmãs numa situação de conflito.
05 – Para se referir à imagem que retratou, a narradora utiliza duas
palavras diferentes.
a) Quais são essas palavras?
Para se referir à imagem, Cali utiliza foto e
clique.
b) Que outras palavras poderiam ser utilizadas pela autora para evitar repetição dessa palavra?
Fotografia, registro fotográfico, retrato, entre
outros sinônimos.
06 – No conto, a autora se vale de diferentes expressões para revelar o
modo como a personagem não conseguia mais sentir as coisas. Quais são?
As expressões meus
olhos permaneceram secos, sempre me fazia chorar, nunca foi nada disso que
fazia despertar tremores e inundações
dentro de mim, etc.
07 – Releia agora um trecho do conto:
“Hoje
vou tomar um café com Janus. Impossível
não
associar sua figura barbuda a um acampamento, uma mochila surrada e uma câmera
no pescoço.
Ninguém
entende melhor as zonas de guerra do que ele.
O medo nunca passa nas zonas de guerra.
Mesmo depois de muitos anos e muitas guerras diferentes. Você
precisa se concentrar no que está a
sua frente, no visor da câmera, e pode não
perceber algo importante, como um estilhaço ou
uma bala vindo em direção à sua
cabeça.
[...]”.
LOURENÇO, Nathalie.
Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira.
Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php.
Acesso em: 27 fev. 2019.
·
Ainda que o
conto não anuncie diretamente a profissão de Janus, podemos inferi-la a partir
do trecho lido. Com o que Janus trabalhava?
Janus também era fotógrafo de guerra, assim como
Cali.
08 – Por que Cali perdeu a emotividade?
Cali trabalhava como fotografa, cobrindo
reportagens de guerras e conflitos. Em um desses trabalhos, um estilhaço
atingiu sua cabeça e a fez sofrer uma espécie de morte cerebral. No entanto,
tempos antes de isso ocorrer, a humanidade havia criado uma nova tecnologia que
permitiria o upload de memórias. Dessa forma, ela teve seu cérebro
transplantado e substituído por um chip, perdendo assim a capacidade de sentir
as coisas e de emocionar.
09 – O que seria o CyberCortex?
CyberCortex é o nome da tecnologia que
permitiu à personagem principal permanecer viva, fazendo com que as memórias
humanas fossem armazenadas em um arquivo digital e depois transferidas para um
chip.
10 – Leia novamente um dos exercícios que o Doutor Kobayashi pediu a
Cali que fizesse:
“Exercício
para tristeza
Faça um
prato de comida. Assista enquanto ele esfria.
Ao esquentá-lo
novamente, imagine se o sabor é o mesmo ou se algo se
perdeu.
Pense sobre isso por dois minutos.”
LOURENÇO, Nathalie.
Exercício para. In: Raimundo – Revista de nova literatura brasileira.
Disponível em: http://www.revistaraimundo.com.br/9/nl1_c.php.
Acesso em: 27 fev. 2019.
a) Os trechos que marcam os exercícios feitos pela personagem para recuperar a sensibilidade estão destacados de que forma ao longo do texto? Por que a autora do conto optou por fazer esse destaque?
Os trechos foram destacados em itálico e obedecem a um recuo em
relação ao restante do texto. A autora possivelmente optou por esses destaques
porque queria dar visibilidade ao texto dos exercícios.
b) Imagine agora que você fosse convidado a colaborar com a pesquisa do Doutor Kobayashi. Que exercícios você sugeriria que Cali fizesse para recuperar as emoções apresentadas?
Resposta pessoal do aluno.
c) Agora pense em uma sensação ou emoção e crie uma receita para ela.
Exercício para...
Resposta pessoal do aluno.
11 – No final do conto, o
discurso direto, ou seja, as falas da personagem Lóris são marcadas de modo não
convencional. Que recurso foi utilizado pela autora para marcar as falas? Por
que ela utiliza esse recurso?
A autora utiliza
letras maiúsculas no trecho “Está Vendo, Cali Chegou, Cali Está Aqui”. Resposta
pessoal do aluno.
12 – Outro aspecto
interessante na organização da narrativa são os nomes dos personagens. Tanto
Janus como Cali são referências a nomes de divindades. Faça uma breve pesquisa
sobre essas figuras míticas e levante uma hipótese sobre o uso desses termos.
Resposta pessoal
do aluno.
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