domingo, 31 de outubro de 2021

CONTO: OS OLHOS QUE COMIAM CARNE - PARTE 1 - HUMBERTO DE CAMPOS - COM GABARITO

 Conto: Os olhos que comiam carne – Parte 1 

           Humberto de Campos

        Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do conhecimento humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

        Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

        – Entra, Roberto.

        O criado empurrou a porta, e entrou.

        – Esta lâmpada está queimada, Roberto? – indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

        – Não, senhor. Está até acesa

        – Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? – exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

        – Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

        – A janela está aberta, Roberto? – gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

        – Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

        Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

        A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu, na imprensa, a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito de nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

        A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico.  E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião da sua viagem a Buenos Aires.

        Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital de Clínicas. E encontrava-se, já, na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

        Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo, grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

[...]

 CAMPOS, Humberto de et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror. São Paulo: Ática, 2009. p. 90-92.

Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 250-3.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Escanhoado: barbeado, liso.

·        Estancieiro: dono de fazenda.

·        Facho: tipo de farol.

·        Laivo: marca.

·        Prognosticar: prever.

·        Reminiscência: lembrança vaga.

·        Seccionamento: ruptura.

·        Tricoline: tecido leve de algodão.

·        Voragem: redemoinho no mar ou no rio.

02 – Retome o que você imaginou a respeito do texto antes da leitura e responda oralmente:

a)   Que tipo de narrador você havia imaginado? Sua hipótese se confirmou na leitura?

Resposta pessoal do aluno.        

b)   Você tinha imaginado que o escritor, em busca da cura, recorreria à medicina ou a forças sobrenaturais? Por quê? Sua hipótese se confirmou na leitura?

Resposta pessoal do aluno.

03 – A cegueira de Paulo Fernando aconteceu de repente ou era prevista? Transcreva em seu caderno um trecho que justifique sua resposta.

      A cegueira de Paulo Fernando era prevista, como indica o trecho: “Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.”

04 – Releia a primeira frase do conto:

        “Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do conhecimento humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernando esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto.”

                       CAMPOS, Humberto de et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror.  São Paulo: Ática, 2009. p. 90.  

a)   Paulo Fernando demora a perceber que está cego. Mas nessa frase, a primeira do conto, um advérbio já antecipa a cegueira da personagem. Qual é esse advérbio?

O advérbio é inutilmente.

b)   Por que ele antecipa a cegueira de Paulo Fernando?

Esse advérbio antecipa a cegueira de Paulo Fernando porque o personagem se esforça para ver o sol penetrar no quarto, mas o esforço é vão, pois ele já estava cego. 

c)   De quem é a voz que emprega esse advérbio no texto?

É a voz do narrador.

d)   A voz que conta os fatos é de um narrador em 1ª ou 3ª pessoal?

A voz é de um narrador em 3ª pessoa.

e)   Esse narrador tem uma visão total ou parcial dos acontecimentos? Explique.

Esse narrador tem uma visão total dos acontecimentos. Ao empregar o advérbio inutilmente, ele sabia de antemão que o personagem estava cego, antes mesmo que a fatalidade fosse exposta no texto para o leitor.

05 – No conto, não são mencionadas datas que permitam situá-lo no tempo com exatidão. No entanto, é certo que ele não se passa nos dias atuais. Que elementos do texto permitem essa conclusão?

   Essa conclusão é possível graças a referências espaciais: “Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto.”

06 – Releia o trecho:

        “Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia.

                    CAMPOS, Humberto de et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror.  São Paulo: Ática, 2009. p. 91. 

a)   Qual a figura de linguagem usada nas três frases desse trecho?

A figura de linguagem é a metáfora.

b)   Que função essa figura de linguagem cumpre no trecho?

Essa figura tem a função de engrandecer as virtudes do escritor ao chama-lo de força criadora, grande máquina que parava, facho de luz que se extinguia no meio da noite.

07 – Marque a alternativa que completa corretamente a afirmação a seguir:

        Do ponto de vista narrativo, “a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos”, é considerada um(a)...

a)   Apresentação, pois introduz um novo personagem.

b)   Conflito, pois gera novos desdobramentos para o enredo.

c)   Clímax, pois promove o momento de maior tensão da história.

d)   Desfecho, pois resolve o conflito vivido pelo escritor Paulo Fernando.


08 – Releia o trecho:

        “[...] E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.”

                           CAMPOS, Humberto de et al. Histórias para não dormir: dez contos de terror.  São Paulo: Ática, 2009. p. 91.

  Considerando o contexto, marque a alternativa que melhor corresponde aos sentidos que as palavras em destaque assumem.

(   ) experiente, orgulhoso e desconversara.

(   ) estrangeiro, ambicioso e desconfiara.

(   ) inovador, esperto e duvidara.

(X) importante, rico e hesitara.

09 – Até este momento da leitura, você encontrou elementos que podem ser associados ao terror? Explique.

      Resposta pessoal do aluno.  

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