Texto: Ensinar programação é a nova alfabetização
Camila Achutti
Eu queria começar... refletindo com vocês: Quando que a gente decidiu aprender a ler e escrever? Existiu algum momento em que os nossos pais foram chamados na escola e perguntaram pra eles se tudo bem, se eles transformassem radicalmente o cérebro dessas crianças para desenvolverem grafomotricidade? Outra boa pergunta seria... a gente lá, bem pequenininha com três anos: “Oi fofura! Então, a gente vai mudar um pouco seu cérebro, tá? A gente vai colocar uma área nova que a gente vai apelidar de caixa de correio para você poder salvar todas as letras que você vai aprendendo, tá bom? Mas só tem mais um detalhezinho: vai ser do meu jeito, no meu tempo, tudo bem? Mas pode ficar tranquilo porque a gente é bem bom nisso.
Não, pessoal, essas perguntas não
acontecem. E, quando eu falo assim, elas soam absurdas.
Imagina, ninguém mais questiona a
necessidade da gente aprender a ler e escrever. Apesar disso não ser um processo
nem um pouco natural. Aliás, ele não é nem um pouco simples. A gente tem todo
um processo. A gente tem que começar se familiarizando, como que a gente segura
no lápis? Eu, por exemplo, decidi segurar com a mão esquerda, outros com a mão
direita. Aí a gente começa a passar por cima de linhas pontilhadas. Aí a gente
reconhece letra, junta em palavra, faz sentença, começa a complicar, vira
texto, aí vira uns textos muito grandes, vira uns livros, certo? Não é fácil,
pessoal! E a gente tem que passar por todo esse processo, porque o nosso
cérebro não nasceu preparado pra isso, diferente da linguagem oral, certo?
A gente tem que passar por uma
reciclagem neural, olha que nome bonito, onde vastas áreas do nosso cérebro
passam a desempenhar funções que elas não foram criadas para isso. Só que a
gente acha isso tão, mas tão importante, que a gente desenvolveu área de
pesquisa, cartilha, método, livro, professores especialistas em alfabetizar
crianças. A gente de fato manda muito bem. Só que agora eu queria que vocês
pensassem comigo, que, apesar de a nossa taxa de analfabetização ter caído
muito desde a época dos escribas, a gente está revivendo essa época. Só que
agora eles são digitais. Alguns poucos dominam como conversar muito bem com as
máquinas, conseguem se valer disso, e têm sucesso. Enquanto outros tantos, eles
são meros usuários.
Usuários que estão sendo programados,
usuários que estão só usando o que é imposto no trabalho ou pela sociedade. A
gente precisa se dedicar para a alfabetização digital, assim como a gente se
dedicou para a alfabetização tradicional. E essa discussão não é nem um pouco
nova, aliás é uma das mais velhas, que é: “O que é que a gente tem que ensinar
na escola?”. Na Roma antiga, a gente decidiu que a gente precisava de sete
artes liberais. Que na época eram ciências, mas pra gente é tudo a mesma coisa.
A gente decidiu que tinha que ter gramática, tinha que ter retórica, tinha que
ter dialética, tinha que ter música, astronomia... É importante, afinal, pra
humanidade continuar se desenvolvendo; a gente precisava daquilo. Aí vem a
Renascença, séculos XV e XVI, a gente colocou algumas outras matérias.
A gente começou a ensinar as crianças a
soletrar, mas a gente evoluiu mesmo nessa época em como ensinar as coisas. A
gente inventou a pedagogia didática foi bem nessa época. Veio o século XVIII, a
gente começou a ensinar várias outras coisas... História, geografia, línguas
estrangeiras também começaram a fazer sentido, o mundo tinha crescido. Mas a
nossa surpresa veio nos séculos XIX e XX. Aí deslanchou, pessoal, tudo se
acelerou! A gente avançou muito, muito mesmo, em arte, ciência e tecnologia, a
gente estava manjando de tudo. Só que aí a gente teve que industrializar...
Inclusive a escola, a gente fez uma escola de massa, e colocou uns 40, 50
alunos por turma, colocou cada matéria na sua caixinha, cada professor
superespecializado naquilo, ele era um mestre, certo?
Ele tinha que ser o mestre, eu
precisava saber tudo, eu precisava saber biologia, história, geografia... Como
que eu ia suportar todo o desenvolvimento que a gente teve? A gente...
inclusive uma parte que eu adoro, que a gente inventou, que foi a avaliação. A
gente agora tinha avaliação matemática. Era ponto. Só que era totalmente
baseado na subjetividade de uma pessoa só. O mestre, certo, pessoal? Só que eu
tenho uma notícia, e ela não é fácil... nada disso faz sentido no século XXI...
E aí? Eu vou dar um exemplo bem simples, só que é do meu trauma de biologia.
Decorar: em qual filo e classe estão os animais e as plantas?
Faz sentido? Fazia, porque vai que eu
estava no meio da floresta, eu tinha que decidir se eu comia a frutinha rosa ou
se eu cor ria do bichinho peludo. Beleza, eu tinha que identificar algumas
características, pôr numa caixinha e falar: Humm, esse aí come carne vou
correr! Agora, pessoal, qualquer criança de 10 anos, com smartphone, tira uma
foto, procura no Google, voilà... Sabe até como o bicho se reproduz, bem
rápido, certo, pessoal? O que importa agora, no século XXI, no século da
internet, no século do smartphone, do software, o que importa é a gente saber
criar relação, é a gente ser criativo, é a gente ter senso crítico do que tudo
isso funciona, de como tudo isso funciona. É isso que importa. Mas a escola, a
escola ainda está ensinando pra gente: decoreba.
Saber como as coisas são feitas muda
como a gente usa. Eu garanto pra vocês, pessoal, que se vocês soubessem como a
gente salva as senhas de vocês, e todo o trabalho que a gente tem para
mantê-las seguras lá, eu garanto que vocês iam pensar umas dez vezes antes de
sair criando conta por aí. Só acho. Reflitam, certo? A gente precisa começar a
ensinar essa criançada como se valer disso. A gente precisa ensinar a linguagem
do século XXI. A gente precisa ensinar nossas crianças a programar. E, olhando
assim, vocês vão pensar: “Que fofa, ela vem aqui, critica o sistema inteiro,
acha que pode e não vai dar nem um plano?”. Calma, eu tenho um plano.
Para a gente mudar qualquer situação, a
gente precisa de três coisas: Primeiro, uma crítica de como as coisas estão.
Segundo, uma visão de como a gente acha que as coisas deveriam ser. E, por
último, e mais difícil, uma teoria de mudança... que é a par te mais
complicada.
Primeiro vou começar pela minha crítica,
que, na verdade, não é uma só, vocês já perceberam... Mas eu vou resumir ela. A
gente não pode continuar acreditando que as nossas crianças, simplesmente
porque a gente chama elas de nativos digitais, sabem tudo de tecnologia.
Pessoal, saber de tecnologia não é sentar pra almoçar ou jantar e bem rapidinho
pegar o tablet e colocar o desenho. Isso não é saber de tecnologia. Nenhuma
dessas crianças sabe explicar por que... Como que aquele aplicativo foi feito?
Elas não têm senso crítico. Eu vou dar
um exemplo pra vocês. Quando eu pergunto pra uma criança: O que é dar um share,
que é aquele compartilhar no Facebook, para quem não está ligado nas coisas,
que é apertar o botão lá. E eu não estou falando isso da boca pra fora,
pessoal. Nesses últimos anos, passaram pela minha mão pelo menos 15 mil jovens.
De todos os gêneros, idades, origens... E se a gente perguntar pra eles,
nativos digitais, que são aqueles que nasceram depois de 2000, o que é dar um
share, eles olham pra você: “Nossa, tia, você não sabe que é apertar um
botão?”. Nós, imigrantes digitais que estamos aqui – e, apesar dos meus 24 anos
e da minha profissão, eu me encaixo nesse grupo –, a gente sabe que dar um
share quer dizer muito mais do que isso. Quer dizer que eu estou dando apoio,
quer dizer que eu estou endossando aquela opinião.
Não ter essa leitura crítica, pessoal,
é muito perigoso. Bom, depois do meu resumo das minhas 9 milhões de críticas,
vamos à minha visão, que é bem simples. A gente precisa colocar programação, pensamento
computacional, vida digital no currículo comum de todas as crianças no sistema
educacional brasileiro. A gente não pode mais evitar essa discussão.
Pra acabar, a parte mais difícil, que é
a teoria de mudança, e ela já começa enrolada. Porque vamos supor que a gente
decidiu aqui que a gente vai ensinar todas as crianças a programar. Quem que
vai fazer isso? Quem que vai decidir o conteúdo? A gente não tem mão de obra
suficiente, pessoal, para suprir o mercado.
Que dirá o sistema educacional
brasileiro. A gente precisa de uma verdadeira revolução. A gente precisa pegar
os nossos professores que já estão lá, que são apaixonados por aquilo, e tirar
deles a pressão de ser expert. A gente tem que transformar eles em
facilitadores. A gente tem que ajudar eles com material bacana, com treinamento
show, a acompanhar a jornada desses jovens. Eles vão aprender como eles podem
ficar seguros na internet, eles vão aprender: Como que a gente faz um
aplicativo? Com esses mesmos mestres que se sentem inseguros e que acham que
programação são letrinhas verdes numa tela preta, que o menino do Vale do
Silício aprendeu com cinco anos e aí ele ficou milionário com 18, só com isso.
A gente tem que quebrar essas barreiras. E eu queria aproveitar esse momento e
os poucos minutos que me faltam pra chamar vocês pra se juntar nessa revolução.
A gente que está em alguma instância
relacionada com o sistema educacional, a gente tem três opções. A primeira, se
a gente for parte do sistema, a gente pode gerar alguma mudança, estando no
sistema. Por exemplo, se vocês chegarem na sala de aula de vocês e discutirem
com seus alunos, plantarem aquela pulguinha de: “Como que nasce um aplicativo,
como se faz um aplicativo?”. Hoje tem muita coisa na internet. Vocês já podem
fazer essa mudança, e se juntar a esse movimento. Segunda situação possível:
vocês podem pressionar o sistema, e aí eu vou dar uma dica ótima! Vai na escola
do seu bairro e pergunta se a sala de informática está joia. Provavelmente ela
não vai estar. Mas, só pra vocês saberem, isso é lei, pessoal. Todas as escolas
têm que ter sala de informática aberta ao público.
Vocês podem pressionar o sistema. Por
último, você pode simplesmente... evitar entrar no sistema e tomar atitudes
fora dele, que é o que eu tenho feito, vou confessar. E aí você pode
simplesmente sentar com seus filhos e conversar sobre tecnologia e perguntar
quais sites ele está acessando. Perguntar se ele tem ideia de como o Facebook
funciona. Busquem juntos, aprendam juntos. Bom, era isso que eu tinha pra falar
pra vocês. Espero que cada um de vocês continue me ajudando, e ajudando o mundo
nessa revolução. O que eu posso garantir pra vocês é que eu vou continuar...
tentando, nem que seja convencer uma pessoa de cada vez a fazer essa revolução.
Obrigada!
ACHUTTI, Camila.
Ensinar programação é a nova alfabetização. TEDxSão Paulo, jun. 2016.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zBqPg80l7xA>. Acesso em:
29 abr. 2019.
Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino fundamental
anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p. 195-204.
Entendendo o texto:
01 – Agora que você leu a
transcrição da fala da palestrante Camila Achutti, retome as discussões
iniciais que fez com seus colegas:
a) Que tipo de linguagem a palestrante empregou: mais formal ou informal? Era a que você havia suposto? Que tom a pesquisadora utiliza para convencer a plateia de que nos dias de hoje deve-se ensinar programação nas escolas?
Resposta pessoal do aluno.
b) As suas hipóteses quanto às mudanças que devem acontecer no sistema escolar estão de acordo com o que Camila Achutti apresenta no seu discurso?
Resposta pessoal do aluno.
c) Com base nas afirmações feitas pela palestrante, você acha que as sugestões de mudança são ou não praticáveis?
Resposta pessoal do aluno.
02 – O texto que você leu
foi apresentado em uma sessão de TED x São Paulo realizada no Estádio Palestra
Itália, em São Paulo. Esse formato de palestras pode ser considerado inovador?
Por quê?
Sim porque se
trata de comunicar um assunto em tempo recorde, 18 minutos, de modo criativo,
objetivo e persuasivo, com o objetivo de comunicar o essencial com embasamento
científico.
03 – Considere o formato da
TED em comparação ao do seminário e responda:
a) Por que as palestras da TED possuem 18 minutos? Faça uma breve pesquisa para descobrir o motivo.
Os idealizadores da TED acreditam que esse seja um tempo médio de
concentração possível a um ser humano. Porém, não existem estudos que comprovem
essa métrica.
b) Quais são as dificuldades que você reconhece na preparação de uma apresentação com caráter científico em 18 minutos?
Resposta pessoal do aluno.
c) Como o formato da TED pode contribuir para aprimorar uma apresentação em seminário?
Ele pode servir como modelo para despertar o interesse da plateia
para o tema, além de ser um formato útil para apresentar um tema de forma
sintética.
04 – Pergunta retórica é uma
interrogação que não tem como objetivo obter uma resposta, mas sim estimular a
reflexão do indivíduo sobre determinado assunto.
a) Camila Achutti inicia sua palestra lançando mão de perguntas retóricas. Quais?
As perguntas retóricas encontram-se no 1° parágrafo da transcrição.
b) Qual pode ser a razão dessa linha de argumentação adotada.
Provavelmente o público-alvo composto de educadores preocupados em
entender o efeito retroativo das tecnologias no sistema escolar.
05 – Em sua fala, a
palestrante tece brevemente uma retrospectiva histórica da formação das
disciplinas escolares.
a) O que ela pretende ao fazer essa retrospectiva?
Ela pretende invalidar a força dessa tradição histórica,
considerando a existência da tecnologia e levar o espectador a concordar com
suas ideias.
b) Ironia é um recurso de crítica comuns em textos orais ou escritos, charges, cartuns, etc. que possibilita ao ouvinte perceber a intenção do falante. Qual pode ter sido a intenção de Camila ao empregar ironia em sua fala?
A intenção de criticar de forma humorada o sistema escolar vigente.
c) Selecione partes do texto ou expressões que comprovem isso.
“Vai ser do meu jeito”; “a gente é bem bom nisso”; “Ele tinha que
ser o mestre, eu precisava saber tudo, eu precisava saber biologia, história,
geografia... Como que eu ia suportar todo o desenvolvimento que a gente teve? A
gente... inclusive uma parte que eu adoro que a gente inventou, que foi a
avaliação. A gente agora tinha avaliação matemática. Era ponto. Só que era
totalmente baseado na subjetividade de uma pessoa só. O mestre, certo,
pessoal?”.
06 – Em explanação, a autora
utiliza um argumento como fio condutor.
a) Qual é esse argumento?
O argumento de que é necessário repensarmos as formas de ensinar e
as adaptarmos ao século XXI, principalmente no que se refere à alfabetização
digital.
b) Que palavras ou expressões do texto justificam a resposta anterior?
Possibilidades de trechos: “nada disso faz sentido no século 21...”,
“A gente precisa se dedicar para a alfabetização digital, assim como a gente se
dedicou para a alfabetização tradicional...”, “Não ter essa leitura crítica,
pessoal, é muito perigoso”, etc.
07 – Pelo discurso da
palestrante, é possível saber qual seria o público-alvo na palestra.
a) Que parte do texto nos dá essa pista?
Sim, a palestrante se dirige a educadores. “A gente que está em
alguma instância relacionada com o sistema educacional, a gente tem três
opções.”.
b) Se você estivesse presente nessa conferência como você reagiria ao que ela propõe? O que ela propõe?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, ela apresenta uma proposta
e quer ser aceita em suas ideias revolucionárias de formar uma geração que
saiba lidar com as informações digitais de forma crítica, ativa, responsiva e
que atribua significado a cada ação realizada virtualmente.
08 – Na transcrição da fala
da palestrante existem muitas marcas características da oralidade. Complete a
tabela com exemplos dessas marcas. Características
– Marcas de oralidade.
Repetições: “A gente precisa
colocar programação...”; “A gente
não pode mais evitar...”; “A gente
precisa de uma verdadeira revolução...”; “A gente precisa... pegar os nossos professores...”; “A gente tem que
transformar...”; “A gente tem que
ajudar eles...”; “A gente tem que
quebrar essas barreiras...”; “A gente
que está em alguma...”; “A gente tem
três opções...”; “A gente pode gerar
alguma mudança...”.
Diálogo
com o interlocutor: “Eu queria
começar... refletindo com vocês...”;
“Eu garanto pra vocês, pessoal, que se vocês soubessem como a gente salva as senhas de vocês, e todo o trabalho que a gente
tem para mantê-las seguras lá, eu garanto que vocês iam pensar umas dez vezes antes de sair criando conta por aí.
Só acho, reflitam, certo?”; “E eu
queria aproveitar esse momento e os poucos minutos que me faltam pra chamar vocês pra se juntar nessa
revolução...”.
Discurso
de referência a si mesmo: “E, olhando
assim, vocês vão pensar: ‘Que fofa, ela
vem aqui, critica o sistema inteiro, acha que pode e não vai dar nem um plano?’.
Calma, eu tenho um plano.”.
Contrações
de palavras: “... nossos pais
foram chamados na escola e perguntaram pra
eles se tudo bem”; “Eu garanto pra
vocês, pessoal”.
Colocações
pronominais ou recursos de regência fora do padrão formal: “...mas eu vou resumir
ela”, “questiona a necessidade da
gente aprender”; “A gente tem que transformar
eles em facilitadores. A gente tem que ajudar
eles com material bacana, com treinamento show, a acompanhar a jornada
desses jovens.”.
Gírias: “material bacana”;
“treinamento show”; “... que é
aquele compartilhar no Facebook para quem não
está ligado nas coisas”; “tira uma foto, procura no Google, voilà...”; “Beleza, eu tinha que identificar algumas...”.
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