Soneto: Bonbonnière – Fragmento
Paulo Henriques Britto
I
A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e
orifício,
o lábio, a língua, o dente, o
plexo

solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra
escura,
o beijo salobro, o sabor
difícil,
a carne assombrada, o esperma
perplexo
— falsa perfeição, mero
artifício
do tempo, a desmaiar todos os
tons
do que destoaria do desejo
como um menino a retirar sem
pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum
sacrifício.
IV
Só não dói mais porque não é
preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de
extraordinário:
A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem
pôr.
É exatamente a conta necessária,
até que alguma solução se
encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No
entanto
há sempre um tralalá, um deus,
um bálsamo
pra não perder a esperança e o
bonde:
A caixa de bombons. A
"Marcha húngara"
de Liszt. Ou Brahms. Um dos
dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é
sábado.
Paulo
Fernando Henriques Britto – Rio de Janeiro RJ 1951.
Entendendo o soneto:
01
– Qual é o tema central do soneto "Bonbonnière"?
O soneto explora
a complexidade da memória, do desejo e da dor. O título "Bonbonnière"
(caixa de bombons) evoca a ideia de uma coleção de momentos e sensações, tanto
prazerosas quanto dolorosas. O poema reflete sobre como a memória seleciona e
molda nossas lembranças, idealizando o passado e, ao mesmo tempo, perpetuando a
dor.
02
– Que recursos poéticos o autor utiliza para expressar a seletividade da
memória?
O autor utiliza
uma série de imagens sensoriais detalhadas para descrever as lembranças, como
"a cor exata da pele, a textura, o odor de cada côncavo e orifício".
Essa descrição vívida e sensual sugere a intensidade das experiências passadas.
No entanto, a expressão "falsa perfeição, mero artifício do tempo"
revela que a memória não é uma reprodução fiel da realidade, mas sim uma
construção subjetiva, moldada pelo desejo e pela emoção.
03
– O que significa a metáfora da caixa de bombons no contexto do poema?
A metáfora da
caixa de bombons representa a memória, que contém uma variedade de lembranças,
tanto doces quanto amargas. O eu-lírico, como um menino que retira bombons da
caixa, seleciona e prioriza certas lembranças em detrimento de outras. A frase
"de que ele abre mão sem nenhum sacrifício" sugere que o eu-lírico
seletivamente escolhe as lembranças que mais lhe convêm, mesmo que isso
signifique deixar de lado momentos importantes ou dolorosos.
04
– Qual é o significado da afirmação "Só não dói mais porque não é
preciso"?
Essa afirmação
paradoxal expressa a ambivalência do eu-lírico em relação à dor. Por um lado,
ele reconhece que a dor faz parte da experiência humana e que, se fosse
necessário, ela seria ainda mais intensa. Por outro lado, ele parece ter se
distanciado da dor, talvez como uma forma de autoproteção. A frase sugere que a
dor está presente, mas é mantida sob controle, como se estivesse adormecida.
05
– O que representam a "Marcha húngara" de Liszt e Brahms no poema?
A referência à
"Marcha húngara" de Liszt e Brahms evoca a ideia de consolo e
esperança. A música, como a caixa de bombons, representa um refúgio contra a
dor e a desesperança. O eu-lírico busca conforto na arte, na beleza e na emoção
que a música proporciona. No entanto, a ressalva "Um dos dois. Ou não.
Tanto faz." revela que nem mesmo a música é capaz de curar a dor por
completo.
06
– Qual é a relação entre o último verso "Hoje é sábado" e o restante
do poema?
O último verso,
aparentemente banal, contrasta com a profundidade e a complexidade dos temas
abordados no poema. A frase "Hoje é sábado" sugere a retomada da
rotina, a volta à vida cotidiana após a imersão nas lembranças e reflexões. O
sábado, um dia de descanso e lazer, pode representar uma tentativa de escapar
da dor e da melancolia. No entanto, a frase também pode ser interpretada como
uma constatação melancólica da passagem do tempo, que não traz necessariamente
alívio ou solução para os problemas existenciais.
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