Reportagem: A solidão do cais
Mario Sergio Cortela
"O que há em mim é
sobretudo cansaço / Não disto ou daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada; /
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço"
O fim está próximo! A ameaça
apocalíptica de muitos profetas e de variados loucos momentâneos ecoa não só
nos templos ou nos desertos eremíticos. A cada final de ano vem essa impressão.
Tempo de preparar-se para prometer revisões para mais tarde, era de nostalgias
postergadas, época de tentar esquecer levemente as asfixias do cotidiano e,
suspirando, ficar imaginando que falta pouco. Pouco para quê? Pouco para o
acabar de um sorrateiro embaço e indefinível cansaço. Neste período, parece que
ficamos todos orbitando em um dos modos de ser de Fernando Pessoa, aquele tão
bem lembrado pelo (fictício?) Álvaro de Campos: "O que há em mim é
sobretudo cansaço / Não disto ou daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada; /
Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço".
A
sensação é que esse cansaço nebuloso é adiado por algumas estereotipadas e
forçadas comemorações coletivas que apenas invadem a inconsciência e perturbam
desejos de somente aquietar-se, se não de forma mais definitiva, ao menos
suspendendo temporariamente as tensões de ter de existir sem pausa e ser
obrigado a participar de um espírito de júbilo traduzido em posse fugaz,
matéria plástica e reconciliações transitórias.
Há um século, em dezembro de 1903, o
lisboeta Fernando Pessoa, com pouco mais de 15 anos, conseguiu ser
brilhantemente admitido na Universidade do Cabo -o exame (um ensaio escrito em
inglês!) rendeu a ele o prêmio Rainha Vitória, grande honraria naquela ocasião.
Nascido em 1888, ficou órfão de pai em 1893; a mãe (a quem dedicara sua
primeira poesia, escrita com sete anos de idade) casou-se então com um
diplomata (sempre viajante) e, para tristeza do menino, poucos meses depois da
redação da quadrinha "A Minha Querida Mamã", teve de acompanhá-los na
mudança da família para a África do Sul, deixando a terra natal. Em Durban,
estudou o idioma britânico, inicialmente em um convento, fez a high school e,
em pouco tempo, foi premiado também pelo desempenho em francês. Voltou a viver
por um ano em Portugal (enquanto o padrasto gozava de uma licença), retornando
à África, na qual o sucesso precoce continuou até o ingresso na universidade.
Mas nem dois anos tinham ainda se
passado e, mesmo com a surpreendente performance acadêmica, o jovem Fernando
decidiu regressar novamente a Lisboa, desta vez sozinho, de modo a
matricular-se no Curso Superior de Letras. Entre a península Ibérica e o cabo
da Boa Esperança, havia a distância e a presença constante do mar, recorrente
na obra do poeta e de seu povo. O já aludido heterônimo do plurifacetado
Pessoa, Álvaro de Campos, um depressivo genial, é autor da corretamente extensa
e conhecida "Ode Marítima", na qual há o secular e perene verso:
"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!".
Ele sabia, nós sabemos. A solidez do
cais, a solidão do cais. Mais um ano. Estar sempre partindo ou ficando. Por
isso, para nos dar alguma paz, esse mesmo Álvaro de Campos escreveu que
"Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem
que fazer planos em papel, / Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
/ Para o partir ainda livre do dia seguinte. / Não há que fazer nada / Na
véspera de não partir nunca".
Dessa fonte interna vem a ânsia de
descanso e a avidez por sossego. Conclui Pessoa/Campos: "Sossego, sim,
sossego... / Grande tranquilidade... / Que repouso, depois de tantas viagens,
físicas e psíquicas! / Que prazer olhar para as malas fitando como para nada! /
Dormita, alma, dormita! / Aproveita, dormita! / Dormita! / É pouco o tempo que
tens! Dormita! / É a véspera de não partir nunca!".
Conta a lenda filosófica que, todas as
vezes que ao filósofo alemão Edmundo Husserl era feita a pergunta "E o
senhor, como vai?", ele respondia mediante e sem titubeio: "Bem!
Sinto apenas uma certa dificuldade em ser...".
MARIO SERGIO CORTELA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de
"A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed.
Cortez/IPF), entre outros. Folha de São Paulo. Caderno Equilíbrio. São Paulo, 4
dez. 2003, p. 12.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 113.
Entendendo a reportagem:
01
– Qual a principal ideia que a reportagem busca transmitir?
A reportagem
busca transmitir a ideia de que o cansaço existencial é uma experiência
universal, especialmente no final do ano. Ao explorar a vida de Fernando Pessoa
e a obra de Álvaro de Campos, o autor sugere que a busca por paz interior e o
desejo de escapar da rotina são sentimentos comuns a muitas pessoas.
02
– Qual o papel da figura de Fernando Pessoa na reportagem?
Fernando Pessoa
serve como um exemplo da experiência humana universal de cansaço e busca por
sentido. A vida do poeta, marcada por viagens, perdas e a criação de múltiplas
personalidades, reflete a complexidade da condição humana.
03
– Qual o significado do "cais" na obra de Pessoa e na
reportagem?
O cais simboliza
a transição, a partida e a chegada. É um lugar de encontros e despedidas, de
esperança e melancolia. Na obra de Pessoa, o cais representa a saudade da terra
natal, a busca por um lugar de pertencimento e a constante sensação de estar em
movimento.
04 – Qual a relação entre o
cansaço existencial e as comemorações de fim de ano?
As comemorações
de fim de ano, muitas vezes marcadas pelo consumismo e pela superficialidade,
contrastam com a busca por um significado mais profundo para a vida. O cansaço
existencial se intensifica nesse período, pois as expectativas e as pressões
sociais aumentam.
05
– Qual o papel da poesia de Álvaro de Campos na reflexão sobre o cansaço
existencial?
A poesia de
Álvaro de Campos, especialmente a "Ode Marítima", expressa de forma
intensa o sentimento de cansaço e a busca por um refúgio interior. O poeta
retrata a solidão do indivíduo em um mundo frenético e a necessidade de
encontrar um momento de paz e tranquilidade.
06
– Qual a importância da frase "Na véspera de não partir nunca"?
Essa frase expressa
o desejo de um descanso eterno, de uma pausa definitiva da jornada da vida. Ela
revela a angústia e a exaustão do indivíduo diante da constante correria do dia
a dia.
07 – Qual a mensagem final da
reportagem?
A mensagem final
da reportagem é um convite à reflexão sobre o sentido da vida e a importância
de buscar a paz interior. Ao explorar a obra de Fernando Pessoa e a experiência
humana universal do cansaço, o autor nos convida a desacelerar, a valorizar os
momentos presentes e a encontrar um significado mais profundo para a nossa
existência.
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