segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

REPORTAGEM: A SOLIDÃO DO CAIS - MARIO SERGIO CORTELA - COM GABARITO

 Reportagem: A solidão do cais

                     Mario Sergio Cortela

          "O que há em mim é sobretudo cansaço / Não disto ou daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada; / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço"

        O fim está próximo! A ameaça apocalíptica de muitos profetas e de variados loucos momentâneos ecoa não só nos templos ou nos desertos eremíticos. A cada final de ano vem essa impressão. Tempo de preparar-se para prometer revisões para mais tarde, era de nostalgias postergadas, época de tentar esquecer levemente as asfixias do cotidiano e, suspirando, ficar imaginando que falta pouco. Pouco para quê? Pouco para o acabar de um sorrateiro embaço e indefinível cansaço. Neste período, parece que ficamos todos orbitando em um dos modos de ser de Fernando Pessoa, aquele tão bem lembrado pelo (fictício?) Álvaro de Campos: "O que há em mim é sobretudo cansaço / Não disto ou daquilo, / Nem sequer de tudo ou de nada; / Cansaço assim mesmo, ele mesmo, / Cansaço".

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgvMdSNvx8N4cAVvWzBVpLt5-TQY5FS5oysNMt2mHbeOU4Kd6PjkjzbMxEFiPhD6UZa6TUxQkJaj8WhUQe3xzUZJmrCBIaf2NNdA4meLeATfgl05iUFwEz80wuGTbh6n8bbPXrThkVkKkXwcWAuiaHPSDhibh-Hz1BXUvtjTbBDLs-TqO-znxTTMNLjGHQ/s1600/CORTELA.jpg


        A sensação é que esse cansaço nebuloso é adiado por algumas estereotipadas e forçadas comemorações coletivas que apenas invadem a inconsciência e perturbam desejos de somente aquietar-se, se não de forma mais definitiva, ao menos suspendendo temporariamente as tensões de ter de existir sem pausa e ser obrigado a participar de um espírito de júbilo traduzido em posse fugaz, matéria plástica e reconciliações transitórias.

        Há um século, em dezembro de 1903, o lisboeta Fernando Pessoa, com pouco mais de 15 anos, conseguiu ser brilhantemente admitido na Universidade do Cabo -o exame (um ensaio escrito em inglês!) rendeu a ele o prêmio Rainha Vitória, grande honraria naquela ocasião. Nascido em 1888, ficou órfão de pai em 1893; a mãe (a quem dedicara sua primeira poesia, escrita com sete anos de idade) casou-se então com um diplomata (sempre viajante) e, para tristeza do menino, poucos meses depois da redação da quadrinha "A Minha Querida Mamã", teve de acompanhá-los na mudança da família para a África do Sul, deixando a terra natal. Em Durban, estudou o idioma britânico, inicialmente em um convento, fez a high school e, em pouco tempo, foi premiado também pelo desempenho em francês. Voltou a viver por um ano em Portugal (enquanto o padrasto gozava de uma licença), retornando à África, na qual o sucesso precoce continuou até o ingresso na universidade.

        Mas nem dois anos tinham ainda se passado e, mesmo com a surpreendente performance acadêmica, o jovem Fernando decidiu regressar novamente a Lisboa, desta vez sozinho, de modo a matricular-se no Curso Superior de Letras. Entre a península Ibérica e o cabo da Boa Esperança, havia a distância e a presença constante do mar, recorrente na obra do poeta e de seu povo. O já aludido heterônimo do plurifacetado Pessoa, Álvaro de Campos, um depressivo genial, é autor da corretamente extensa e conhecida "Ode Marítima", na qual há o secular e perene verso: "Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!".

        Ele sabia, nós sabemos. A solidez do cais, a solidão do cais. Mais um ano. Estar sempre partindo ou ficando. Por isso, para nos dar alguma paz, esse mesmo Álvaro de Campos escreveu que "Na véspera de não partir nunca / Ao menos não há que arrumar malas / Nem que fazer planos em papel, / Com acompanhamento involuntário de esquecimentos, / Para o partir ainda livre do dia seguinte. / Não há que fazer nada / Na véspera de não partir nunca".

        Dessa fonte interna vem a ânsia de descanso e a avidez por sossego. Conclui Pessoa/Campos: "Sossego, sim, sossego... / Grande tranquilidade... / Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas! / Que prazer olhar para as malas fitando como para nada! / Dormita, alma, dormita! / Aproveita, dormita! / Dormita! / É pouco o tempo que tens! Dormita! / É a véspera de não partir nunca!".

        Conta a lenda filosófica que, todas as vezes que ao filósofo alemão Edmundo Husserl era feita a pergunta "E o senhor, como vai?", ele respondia mediante e sem titubeio: "Bem! Sinto apenas uma certa dificuldade em ser...".

MARIO SERGIO CORTELA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos" (ed. Cortez/IPF), entre outros. Folha de São Paulo. Caderno Equilíbrio. São Paulo, 4 dez. 2003, p. 12.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 113.

Entendendo a reportagem:

01 – Qual a principal ideia que a reportagem busca transmitir?

      A reportagem busca transmitir a ideia de que o cansaço existencial é uma experiência universal, especialmente no final do ano. Ao explorar a vida de Fernando Pessoa e a obra de Álvaro de Campos, o autor sugere que a busca por paz interior e o desejo de escapar da rotina são sentimentos comuns a muitas pessoas.

02 – Qual o papel da figura de Fernando Pessoa na reportagem?

      Fernando Pessoa serve como um exemplo da experiência humana universal de cansaço e busca por sentido. A vida do poeta, marcada por viagens, perdas e a criação de múltiplas personalidades, reflete a complexidade da condição humana.

03 – Qual o significado do "cais" na obra de Pessoa e na reportagem?

      O cais simboliza a transição, a partida e a chegada. É um lugar de encontros e despedidas, de esperança e melancolia. Na obra de Pessoa, o cais representa a saudade da terra natal, a busca por um lugar de pertencimento e a constante sensação de estar em movimento.

04 – Qual a relação entre o cansaço existencial e as comemorações de fim de ano?

      As comemorações de fim de ano, muitas vezes marcadas pelo consumismo e pela superficialidade, contrastam com a busca por um significado mais profundo para a vida. O cansaço existencial se intensifica nesse período, pois as expectativas e as pressões sociais aumentam.

05 – Qual o papel da poesia de Álvaro de Campos na reflexão sobre o cansaço existencial?

      A poesia de Álvaro de Campos, especialmente a "Ode Marítima", expressa de forma intensa o sentimento de cansaço e a busca por um refúgio interior. O poeta retrata a solidão do indivíduo em um mundo frenético e a necessidade de encontrar um momento de paz e tranquilidade.

06 – Qual a importância da frase "Na véspera de não partir nunca"?

      Essa frase expressa o desejo de um descanso eterno, de uma pausa definitiva da jornada da vida. Ela revela a angústia e a exaustão do indivíduo diante da constante correria do dia a dia.

07 – Qual a mensagem final da reportagem?

      A mensagem final da reportagem é um convite à reflexão sobre o sentido da vida e a importância de buscar a paz interior. Ao explorar a obra de Fernando Pessoa e a experiência humana universal do cansaço, o autor nos convida a desacelerar, a valorizar os momentos presentes e a encontrar um significado mais profundo para a nossa existência.

 

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