Crônica: Uma espécie em extinção
Raquel de Queiroz
A moça, estudante de letras, me perguntou o que eu achava da avassaladora invasão de neologismos no nosso idioma. Bem, acho que da nova linguagem que acompanhou e acompanha a era dos computadores, é muito difícil escapar. Ninguém vai ficar inventando traduções para coisas que não fomos nós que inventamos e a maioridade nós mal sabemos do que se trata. Deletar, por exemplo, não tem um sentido muito mais amplo do que simplesmente apagar?
Mas não quero me arvorar nessa discussão de filólogos,
mormente que não me entendo com computador. Aliás, fora esses, que vêm no bojo
das novas tecnologias, neologismos, principalmente os de gíria, têm quase
sempre nascimento humilde. As pessoas mais cultas, ou escutam as palavras
difíceis na sua própria casa ou as consultam nos dicionários. O ignorante comum
tem seu próprio dicionário na cabeça, restrito, é verdade, muito faltoso na
conjugação dos verbos, mas dono de um toque pessoal iniludível.
Foi
um assunto que sempre me impressionou, como é que nasce uma linguagem. Quando
eu era ainda menina e começaram a me ensinar francês, o grande mistério para
mim era: como foi que eles deram para falar desse jeito? Inventaram primeiro as
palavras todas e desandaram falando, ou foram inventando as palavras de uma em
uma?
Devemos confessar que, a esta altura do
mundo, ainda sabemos muito pouco da invenção da linguagem. Claro que os
especialistas explicam tudo a respeito, mas quem é que acredita em
especialista? Por exemplo: na nossa língua se diz menino-menina. De repente
veio alguém, que inventou "criança", uma palavra só para dizer no
lugar das duas. E afinal todas essas minhas hipóteses são justas, pois ninguém
sabe mesmo como é que nasce um idioma. Descartando-se a origem bíblica do par
inicial, Adão e Eva, que já nasceu grandinho e falando tudo, como é que começa
uma língua? Tudo virá mesmo de um casal inicial? Porque, em resumo, a indagação
principal é esta: a gente provém de um par humano único ou da lenta
transformação de macacos em homens? E, mesmo dentro desta hipótese, como
começou o primeiro casal de macacos? Os livros de História Natural não nos
ensinam nada disso. Será que a princípio foi uma bolha e dentro da bolha havia
um ponto de vida, e esse ponto virou um animálculo, e o animálculo foi-se
dividindo em duas partes, e depois suas metades se dividiram em duas, de
divisão em divisão, chegaram ao homem? No colégio da Imaculada, quando
estudávamos para normalistas, o nosso professor, um médico, ateu, citou as
diversas hipóteses para a criação da vida e seu desenvolvimento, e nos disse
sorrindo:
"Escolham a melhor que lhes
parecer dessas hipóteses, mas não contem às Irmãs que eu desdenhei de Adão e
Eva."
Vocês já pensaram o que seria essa
frase do professor, ou antes, essa dúvida para um auditório de meninas,
composto de adolescentes como eu, que era a mais nova, mulheres já feitas,
muitas delas se preparando para o noviciado religioso?
Bem, para as postulantes, as quase
freiras, não havia problemas, já estavam encartadas no papel, tinham ouvidos
moucos para tudo que fugisse à doutrina. Mas o meu time fervia, cada uma
inventava a sua teoria da criação e da reprodução, mas éramos tão
excessivamente ignorantes que nada sabíamos, mas nada mesmo, da anatomia
humana. Um menino de 5 anos, nu, de certa forma era defeso ao nosso olhar.
Menina, desde pequenina, não se misturava com meninos. Maria Vicência, uma das
nossas auxiliares de disciplina, nos obrigava a tomar banho de chuveiro,
vestidas em camisolões, e uma das auxiliares da disciplina ensinava às pequenas
a se enxugar e mudar de roupa. Nós que nos virássemos, protegidas pela toalha
que se destinava originalmente não só a nos enxugar, como a nos cobrir. Curioso
é que jamais discutíamos em casa a obsessão de modéstia imposta no internato.
Em casa víamos nossas tias jovens e as primas passeando pelo quarto em trajes
menores, sem qualquer curiosidade de nossa parte. Talvez pensássemos
obscuramente que as mulheres de casa compunham um núcleo especial.
Engraçado é que, da adolescência à
velhice, a gente evolui muito menos do que pensa. Mesmo depois de tanta idade,
ainda temos uma vasta cópia de curiosidades reprimidas.
Talvez as moças de hoje já procedam
diversamente. Mas nós, coitadas, vamos morrer mesmo como espécies de uma raça
extinta.
QUEIROZ, Raquel de. Correio Braziliense. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/EDICAO 20020805/pri opi 050802 16htm. Acesso em: 5 ago.
2002.
Fonte: livro Português:
Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª
edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 134-135.
Entendendo a crônica:
01 –
Qual a principal ideia que a crônica busca transmitir?
A crônica busca
transmitir a ideia de que a linguagem é um fenômeno complexo e cheio de
mistérios. A autora questiona a origem das palavras, a evolução da linguagem e
a forma como construímos nosso conhecimento sobre o mundo. Além disso, a
crônica reflete sobre a construção da identidade feminina e a repressão sexual
na época em que a autora viveu.
02
– Qual o papel da anedota sobre o professor ateu na crônica?
A anedota sobre o professor
ateu serve para ilustrar a complexidade das questões relacionadas à origem da
vida e à criação. Ao apresentar diferentes hipóteses, o professor provoca a
curiosidade das alunas e as convida a questionar as verdades estabelecidas.
03
– Qual a importância da referência à vida no internato para a crônica?
A referência à
vida no internato permite que a autora explore a construção da identidade
feminina em um ambiente marcado pela repressão sexual e pela imposição de
valores religiosos. A experiência da autora no internato revela a curiosidade
natural dos adolescentes em relação ao corpo e à sexualidade, contrastando com
a rigidez das normas sociais da época.
04
– Qual a relação entre a linguagem e a identidade?
A linguagem é uma
ferramenta fundamental para a construção da identidade. As palavras que
utilizamos, a forma como nos expressamos e o nosso vocabulário revelam muito
sobre quem somos e como vemos o mundo. A autora sugere que a linguagem não é
apenas um meio de comunicação, mas também um reflexo da nossa história e da
nossa cultura.
05
– Qual a importância da pergunta sobre a origem da vida para a crônica?
A pergunta sobre
a origem da vida serve como ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre
a existência humana. Ao questionar como a vida surgiu e como a linguagem se
desenvolveu, a autora nos convida a pensar sobre nosso lugar no universo e
sobre o significado da vida.
06
– Qual o tom predominante na crônica?
O tom
predominante na crônica é irônico e leve. A autora utiliza a linguagem
coloquial e a primeira pessoa do singular para criar uma proximidade com o
leitor e tornar a leitura mais agradável. Ao mesmo tempo, a crônica aborda
temas profundos e complexos de forma inteligente e perspicaz.
07
– Qual a relevância da crônica para a sociedade contemporânea?
A crônica de
Raquel de Queiroz continua relevante para a sociedade contemporânea, pois
aborda questões que ainda são objeto de debate, como a origem da vida, a
construção da identidade e a relação entre linguagem e pensamento. Além disso,
a crônica nos convida a refletir sobre o papel da educação na formação do
indivíduo e a importância de questionar as verdades estabelecidas.
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