segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

CRÔNICA: UMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO - RAQUEL DE QUEIROZ - COM GABARITO

 Crônica: Uma espécie em extinção

             Raquel de Queiroz

        A moça, estudante de letras, me perguntou o que eu achava da avassaladora invasão de neologismos no nosso idioma. Bem, acho que da nova linguagem que acompanhou e acompanha a era dos computadores, é muito difícil escapar. Ninguém vai ficar inventando traduções para coisas que não fomos nós que inventamos e a maioridade nós mal sabemos do que se trata. Deletar, por exemplo, não tem um sentido muito mais amplo do que simplesmente apagar? 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiwK2LNm2c9932Us9NkdGIrU4LXp_v_tpLv-3wP2nJ83EVyQuk6fonX68ShE1r_2MbZqmu0Pe7xTV01lEV_OkvK8qGi30ssQaJ29zL-2Ns7X75FCc9ZPQC-MkWabOWBzdKCXbnkgup_H3d29-DatCcG9POJcqRNeplTzFpxE3njEV5ZcAg2swzKKGb9izU/s320/rachel-de-queiroz.jpg


Mas não quero me arvorar nessa discussão de filólogos, mormente que não me entendo com computador. Aliás, fora esses, que vêm no bojo das novas tecnologias, neologismos, principalmente os de gíria, têm quase sempre nascimento humilde. As pessoas mais cultas, ou escutam as palavras difíceis na sua própria casa ou as consultam nos dicionários. O ignorante comum tem seu próprio dicionário na cabeça, restrito, é verdade, muito faltoso na conjugação dos verbos, mas dono de um toque pessoal iniludível.

        Foi um assunto que sempre me impressionou, como é que nasce uma linguagem. Quando eu era ainda menina e começaram a me ensinar francês, o grande mistério para mim era: como foi que eles deram para falar desse jeito? Inventaram primeiro as palavras todas e desandaram falando, ou foram inventando as palavras de uma em uma?

        Devemos confessar que, a esta altura do mundo, ainda sabemos muito pouco da invenção da linguagem. Claro que os especialistas explicam tudo a respeito, mas quem é que acredita em especialista? Por exemplo: na nossa língua se diz menino-menina. De repente veio alguém, que inventou "criança", uma palavra só para dizer no lugar das duas. E afinal todas essas minhas hipóteses são justas, pois ninguém sabe mesmo como é que nasce um idioma. Descartando-se a origem bíblica do par inicial, Adão e Eva, que já nasceu grandinho e falando tudo, como é que começa uma língua? Tudo virá mesmo de um casal inicial? Porque, em resumo, a indagação principal é esta: a gente provém de um par humano único ou da lenta transformação de macacos em homens? E, mesmo dentro desta hipótese, como começou o primeiro casal de macacos? Os livros de História Natural não nos ensinam nada disso. Será que a princípio foi uma bolha e dentro da bolha havia um ponto de vida, e esse ponto virou um animálculo, e o animálculo foi-se dividindo em duas partes, e depois suas metades se dividiram em duas, de divisão em divisão, chegaram ao homem? No colégio da Imaculada, quando estudávamos para normalistas, o nosso professor, um médico, ateu, citou as diversas hipóteses para a criação da vida e seu desenvolvimento, e nos disse sorrindo:

        "Escolham a melhor que lhes parecer dessas hipóteses, mas não contem às Irmãs que eu desdenhei de Adão e Eva."

        Vocês já pensaram o que seria essa frase do professor, ou antes, essa dúvida para um auditório de meninas, composto de adolescentes como eu, que era a mais nova, mulheres já feitas, muitas delas se preparando para o noviciado religioso?

        Bem, para as postulantes, as quase freiras, não havia problemas, já estavam encartadas no papel, tinham ouvidos moucos para tudo que fugisse à doutrina. Mas o meu time fervia, cada uma inventava a sua teoria da criação e da reprodução, mas éramos tão excessivamente ignorantes que nada sabíamos, mas nada mesmo, da anatomia humana. Um menino de 5 anos, nu, de certa forma era defeso ao nosso olhar. Menina, desde pequenina, não se misturava com meninos. Maria Vicência, uma das nossas auxiliares de disciplina, nos obrigava a tomar banho de chuveiro, vestidas em camisolões, e uma das auxiliares da disciplina ensinava às pequenas a se enxugar e mudar de roupa. Nós que nos virássemos, protegidas pela toalha que se destinava originalmente não só a nos enxugar, como a nos cobrir. Curioso é que jamais discutíamos em casa a obsessão de modéstia imposta no internato. Em casa víamos nossas tias jovens e as primas passeando pelo quarto em trajes menores, sem qualquer curiosidade de nossa parte. Talvez pensássemos obscuramente que as mulheres de casa compunham um núcleo especial.

        Engraçado é que, da adolescência à velhice, a gente evolui muito menos do que pensa. Mesmo depois de tanta idade, ainda temos uma vasta cópia de curiosidades reprimidas.

        Talvez as moças de hoje já procedam diversamente. Mas nós, coitadas, vamos morrer mesmo como espécies de uma raça extinta.

QUEIROZ, Raquel de. Correio Braziliense. Disponível em: http://www2.correioweb.com.br/EDICAO 20020805/pri opi 050802 16htm. Acesso em: 5 ago. 2002.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 134-135.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal ideia que a crônica busca transmitir?

      A crônica busca transmitir a ideia de que a linguagem é um fenômeno complexo e cheio de mistérios. A autora questiona a origem das palavras, a evolução da linguagem e a forma como construímos nosso conhecimento sobre o mundo. Além disso, a crônica reflete sobre a construção da identidade feminina e a repressão sexual na época em que a autora viveu.

02 – Qual o papel da anedota sobre o professor ateu na crônica?

      A anedota sobre o professor ateu serve para ilustrar a complexidade das questões relacionadas à origem da vida e à criação. Ao apresentar diferentes hipóteses, o professor provoca a curiosidade das alunas e as convida a questionar as verdades estabelecidas.

03 – Qual a importância da referência à vida no internato para a crônica?

      A referência à vida no internato permite que a autora explore a construção da identidade feminina em um ambiente marcado pela repressão sexual e pela imposição de valores religiosos. A experiência da autora no internato revela a curiosidade natural dos adolescentes em relação ao corpo e à sexualidade, contrastando com a rigidez das normas sociais da época.

04 – Qual a relação entre a linguagem e a identidade?

      A linguagem é uma ferramenta fundamental para a construção da identidade. As palavras que utilizamos, a forma como nos expressamos e o nosso vocabulário revelam muito sobre quem somos e como vemos o mundo. A autora sugere que a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas também um reflexo da nossa história e da nossa cultura.

05 – Qual a importância da pergunta sobre a origem da vida para a crônica?

      A pergunta sobre a origem da vida serve como ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre a existência humana. Ao questionar como a vida surgiu e como a linguagem se desenvolveu, a autora nos convida a pensar sobre nosso lugar no universo e sobre o significado da vida.

06 – Qual o tom predominante na crônica?

      O tom predominante na crônica é irônico e leve. A autora utiliza a linguagem coloquial e a primeira pessoa do singular para criar uma proximidade com o leitor e tornar a leitura mais agradável. Ao mesmo tempo, a crônica aborda temas profundos e complexos de forma inteligente e perspicaz.

07 – Qual a relevância da crônica para a sociedade contemporânea?

      A crônica de Raquel de Queiroz continua relevante para a sociedade contemporânea, pois aborda questões que ainda são objeto de debate, como a origem da vida, a construção da identidade e a relação entre linguagem e pensamento. Além disso, a crônica nos convida a refletir sobre o papel da educação na formação do indivíduo e a importância de questionar as verdades estabelecidas.

 

 

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