CRÔNICA: MÚSICA NO TÁXI
Carlos Drummond de Andrade Prazeres
do cotidiano. Quando menos se espera... Você pega o táxi, manda tocar para o
seu destino (manda, não, pede por favor) e resigna-se a escutar durante 20
minutos, no volume mais possante, o rádio despejando assaltos e homicídios do
dia. Os tiros, os gemidos, os desabamentos o acompanharão por todo o percurso.
É a fatalidade da vida, quando se tem pressa.
Mas eis que o motorista pega de um
imprevisto cassete, coloca-o no lugar devido, liga, e os acordes melódicos dos
Contos dos Bosques de Viena irrompem do fusca amarrotado, mas digno.
Bem, não é a Nona Sinfonia nem um
título menor da grande música, mas não estamos na Sala Cecília Meireles, e isso
vale como homenagem especial a um passageiro distinto, que pede por favor.
Cumpre agradecer a fineza:
– Obrigado. O senhor mostra que tem
satisfação em agradar os passageiros, oferecendo-lhes música e não barulho e
crimes.
–
Não tem de quê. O senhor também aprecia?
– O quê?
– Strauss. É um dos meus prediletos.
– Sim, ele é agradável. O senhor está
sendo gentil comigo.
–
Ora, não é tanto assim. Pus o cassete porque gosto de música. Não sabia se o
senhor também gostava ou não. Se não gostasse, eu desligava. Portanto, não tem
que agradecer.
– E já lhe aconteceu desligar?
– Ih, tantas vezes. Fico observando a fisionomia do passageiro. Uns, mais acanhados,
disfarçam, não dizem nada, mas tem outros que reclamam, não querem ouvir esse
troço. O senhor já pensou: chamar Tchaikovski de “esse troço”? Pois ouvi isso
de um cidadão de gravata e pasta de executivo. Disse que precisava se
concentrar, por causa de um negócio importante, e Tchaikovski perturbava a
concentração.
– Ele talvez quisesse dizer que ficava
tão empolgado pela música que esquecia o negócio.
– Pois sim! Nesse caso, não falaria
“esse troço”, que é o cúmulo da falta de respeito.
– Estou adivinhando que o senhor toca
um instrumento.
Olhou-me admirado:
– Como é que o senhor viu?
– Porque uma pessoa que gosta tanto de
música, em geral toca. Seu instrumento qual é?
Virou-se com tristeza na voz?
– Atualmente nenhum. O senhor sabe, essa crise
geral, a gasolina pela hora da morte, e não é só a gasolina: a comida, o
sapato, o resto. Tive de vender pra tapar uns buracos. Mas se as coisas
melhorarem este ano...
– Melhoram. As coisas tem que melhorar
– achei do meu dever confortá-lo.
– Porque clarinetista sem clarinete, o senhor
sabe, é um negócio sem sentido. Clarinete tem esta vantagem: dá o recado sem
precisar de orquestra. Um solo bem executado, não precisa mais pra encantar a alma.
Mas clarinetista, sozinho, fica até ridículo.
– Não diga isso. E não desanime. O dia
em que arranjar outro clarinete – quem sabe?, talvez até seja o mesmo que lhe
pertenceu – será uma festa.
– Mas se demorar muito eu já estarei
tão desacostumado que nem sei se volto a tocar razoavelmente. Porque, o senhor
compreende, eu não sou um artista, minha vida não dá folga pra estudar nem meia
hora por dia.
– O importante é gostar de música, tem
amor e devoção por música, e está-se vendo que o senhor tem de sobra.
–
Lá isso tá certo.
– Não importa que o senhor não seja
solista de uma grande orquestra, e mesmo de uma orquestra comum. Ninguém
precisa ser grande em nada, desde que cultive alguma coisa bonita na vida.
Seu rosto iluminou-se.
– Que bom ouvir uma coisa dessas. Agora
vou lhe confessar que isso de não ser músico dos tais que arrebatam o auditório
sempre me doeu um pouco. Não era por vaidade não, quem sou pra ter vaidade? Mas
um sonho esquisito. Sei lá. Ficava me imaginando num palco iluminado,
tocando... Bobagem, o senhor desculpe. Agora a sua palavra deixou tudo claro.
Basta eu gostar de música. Não é preciso que gostem de mim, nem que ela goste
de mim. Obrigado ao senhor.
Olhei o taxímetro, tirei a carteira.
– Eu nem devia cobrar do senhor.
Fico até encabulado!
(Boca de Luar, 6ª ed., págs. 69-71, Editora Record, Rio,
1987).
Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.vistocar.com.br%2Frenovacao-de-crm-para-taxis&psig=AOvVaw1E1GUYqLMA0klwuvM6jdas&ust=1609024559455000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPC09d6h6u0CFQAAAAAdAAAAABAD
01 - A finalidade principal
do texto é
a) contar como é o cotidiano
prazeroso de um motorista de táxi e a vida dos passageiros que viajam com ele.
b) denunciar as injustiças
sociais que fazem com que um músico, por falta de oportunidades, exerça um
outro tipo de profissão.
c) mostrar que um motorista
de táxi também pode ser culto e surpreender as pessoas.
d) mostrar que,
quando menos se espera, podemos romper com a rudeza do cotidiano e encontrar
prazer em uma situação inesperada.
e) falar de profissões
simples que contribuem para a sociedade.
02 - Em “Quando menos se
espera...”, sem alteração de sentido, o conectivo em destaque pode ser
substituído por
a) embora.
b) desde que.
c) mesmo que.
d) uma vez que.
e) no momento em
que.
03 - “... e os acordes melódicos dos Contos dos
Bosques de Viena irrompem do fusca
amarrotado, mas digno.” A palavra em destaque no trecho acima significa
a) invadir subitamente.
b) manifestar-se em alto
volume.
c) fazer-se ouvir
delicadamente.
d) entrar delicadamente.
e) aparecer misteriosamente.
04 - No trecho “Bem, não é a Nona Sinfonia nem um título
menor da grande música, mas não estamos na Sala Cecília Meireles, e isso vale
como homenagem especial a um passageiro distinto, que pede por favor”,
observamos um narrador que
a) relata como se não conhecesse
os pensamentos e sentimentos das personagens.
b) apenas observa os fatos
da história.
c) participa da
história como personagem.
d) conta uma história e não
participa da ação relatada.
e) tudo sabe e conhece o
pensamento e os sentimentos das personagens que participam da história.
05 - Em relação à acentuação gráfica, analise as
proposições a seguir:
I.
As palavras rádio, negócio e auditório são
acentuadas por serem proparoxítonas.
II.
Ninguém
e também são acentuadas por serem oxítonas terminadas em “em”.
III.
A
palavra agradável é acentuada por ser uma paroxítona terminada em “l”.
IV.
As
palavras táxi, será e está obedecem à mesma regra de acentuação.
É correto o que se afirma em
a) I e II.
b) I e III.
c) II e III.
d) I, II e III.
e) I, II e IV.
06 - Transportando-se para a
voz passiva a frase. “Clarinete dá o recado sem precisar de orquestra”, a forma
verbal resultante será:
a) será dado.
b) é dado.
c) está sendo dado.
d) foi dado.
07 - Em “Quando se tem pressa”. O termo
sublinhado estabelece relação de:
a) oposição.
b) causa.
c) condição.
d) tempo.
08 - A frase “Quando menos
se espera”... (1º parágrafo) relaciona-se com um adjetivo do 2º parágrafo.
Assinale o:
a) amarrotado.
b) digno.
c) melódicos.
d) imprevisto.
09 - De acordo com o texto,
durante o trajeto percorrido pelo táxi, o passageiro sente-se agradecido por
a) encontrar
música, em vez das tragédias diárias noticiadas pelas rádios.
b) poder ajudar o motorista
a recuperar o seu clarinete.
c) não ter de pagar a
corrida ao motorista do táxi.
d) poder ajudar alguém
desanimado a recuperar sua autoestima.
e) poder conversar com
alguém que também gosta de música.
10 - Na fala do motorista “Ficava me imaginando num palco iluminado,
tocando...”, as reticências foram usadas para
a) indicar que alguém
interrompeu a fala do motorista.
b) sinalizar uma interrupção
brusca da história.
c) representar, na escrita,
hesitações comuns na língua falada.
d) sugerir emoção,
num intervalo de silêncio.
e) indicar que uma parte da
história foi suprimida.
11 - No trecho “O senhor já pensou: chamar Tchaikovsky de
‘esse troço’?”, a observação feita por um passageiro provocou no motorista
a) ódio.
b) revolta.
c) agressividade.
d) indiferença.
e) raiva.
12 - A frase que encerra a
mensagem principal dessa crônica é
a) “Não desanime. O dia em
que arranjar outro clarinete – quem sabe?, talvez até seja o mesmo que lhe
pertenceu – será uma festa.”
b) “O importante é gostar de música, tem amor
e devoção por música, e está-se vendo que o senhor tem de sobra.”
c) “Ninguém
precisa ser grande em nada, desde que cultive alguma coisa bonita na vida.”
d) “Ficava me imaginando num
palco iluminado, tocando... Bobagem...”
e) “Não é preciso que gostem
de mim, nem que ela goste de mim.”
13 - No trecho “Se não gostasse, eu desligava.”, a
oração em destaque mantém com a outra do período relação de
a) concessão.
b) finalidade.
c) causa.
d) consequência.
e) condição.
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