sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

CRÔNICA: MÚSICA NO TÁXI - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 CRÔNICA: MÚSICA NO TÁXI

                         Carlos Drummond de Andrade

        Prazeres do cotidiano. Quando menos se espera... Você pega o táxi, manda tocar para o seu destino (manda, não, pede por favor) e resigna-se a escutar durante 20 minutos, no volume mais possante, o rádio despejando assaltos e homicídios do dia. Os tiros, os gemidos, os desabamentos o acompanharão por todo o percurso. É a fatalidade da vida, quando se tem pressa.  

        Mas eis que o motorista pega de um imprevisto cassete, coloca-o no lugar devido, liga, e os acordes melódicos dos Contos dos Bosques de Viena irrompem do fusca amarrotado, mas digno.  

        Bem, não é a Nona Sinfonia nem um título menor da grande música, mas não estamos na Sala Cecília Meireles, e isso vale como homenagem especial a um passageiro distinto, que pede por favor. Cumpre agradecer a fineza:  

        – Obrigado. O senhor mostra que tem satisfação em agradar os passageiros, oferecendo-lhes música e não barulho e crimes.

        – Não tem de quê. O senhor também aprecia? 

        – O quê?  

        – Strauss. É um dos meus prediletos.  

        – Sim, ele é agradável. O senhor está sendo gentil comigo.

        – Ora, não é tanto assim. Pus o cassete porque gosto de música. Não sabia se o senhor também gostava ou não. Se não gostasse, eu desligava. Portanto, não tem que agradecer.  

        – E já lhe aconteceu desligar?  

       – Ih, tantas vezes. Fico observando a  fisionomia do passageiro. Uns, mais acanhados, disfarçam, não dizem nada, mas tem outros que reclamam, não querem ouvir esse troço. O senhor já pensou: chamar Tchaikovski de “esse troço”? Pois ouvi isso de um cidadão de gravata e pasta de executivo. Disse que precisava se concentrar, por causa de um negócio importante, e Tchaikovski perturbava a concentração.  

         – Ele talvez quisesse dizer que ficava tão empolgado pela música que esquecia o negócio.  

         – Pois sim! Nesse caso, não falaria “esse troço”, que é o cúmulo da falta de respeito.  

         – Estou adivinhando que o senhor toca um instrumento. 

         Olhou-me admirado: 

         – Como é que o senhor viu?  

         – Porque uma pessoa que gosta tanto de música, em geral toca. Seu instrumento qual é?  

          Virou-se com tristeza na voz?

         – Atualmente nenhum. O senhor sabe, essa crise geral, a gasolina pela hora da morte, e não é só a gasolina: a comida, o sapato, o resto. Tive de vender pra tapar uns buracos. Mas se as coisas melhorarem este ano...  

         – Melhoram. As coisas tem que melhorar – achei do meu dever confortá-lo.

         – Porque clarinetista sem clarinete, o senhor sabe, é um negócio sem sentido. Clarinete tem esta vantagem: dá o recado sem precisar de orquestra. Um solo bem executado, não precisa mais pra encantar a alma. Mas clarinetista, sozinho, fica até ridículo.  

         – Não diga isso. E não desanime. O dia em que arranjar outro clarinete – quem sabe?, talvez até seja o mesmo que lhe pertenceu – será uma festa.  

         – Mas se demorar muito eu já estarei tão desacostumado que nem sei se volto a tocar razoavelmente. Porque, o senhor compreende, eu não sou um artista, minha vida não dá folga pra estudar nem meia hora por dia.  

         – O importante é gostar de música, tem amor e devoção por música, e está-se vendo que o senhor tem de sobra.

        – Lá isso tá certo.

       – Não importa que o senhor não seja solista de uma grande orquestra, e mesmo de uma orquestra comum. Ninguém precisa ser grande em nada, desde que cultive alguma coisa bonita na vida. 

       Seu rosto iluminou-se.  

        – Que bom ouvir uma coisa dessas. Agora vou lhe confessar que isso de não ser músico dos tais que arrebatam o auditório sempre me doeu um pouco. Não era por vaidade não, quem sou pra ter vaidade? Mas um sonho esquisito. Sei lá. Ficava me imaginando num palco iluminado, tocando... Bobagem, o senhor desculpe. Agora a sua palavra deixou tudo claro. Basta eu gostar de música. Não é preciso que gostem de mim, nem que ela goste de mim. Obrigado ao senhor.  

           Olhei o taxímetro, tirei a carteira.  

           – Eu nem devia cobrar do senhor. Fico até encabulado!

(Boca de Luar, 6ª ed., págs. 69-71, Editora Record, Rio, 1987).

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.vistocar.com.br%2Frenovacao-de-crm-para-taxis&psig=AOvVaw1E1GUYqLMA0klwuvM6jdas&ust=1609024559455000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPC09d6h6u0CFQAAAAAdAAAAABAD


 ENTENDENDO A CRÔNICA

01 - A finalidade principal do texto é

a) contar como é o cotidiano prazeroso de um motorista de táxi e a vida dos passageiros que viajam com ele.

b) denunciar as injustiças sociais que fazem com que um músico, por falta de oportunidades, exerça um outro tipo de profissão.

c) mostrar que um motorista de táxi também pode ser culto e surpreender as pessoas.

d) mostrar que, quando menos se espera, podemos romper com a rudeza do cotidiano e encontrar prazer em uma situação inesperada.

e) falar de profissões simples que contribuem para a sociedade.

 

02 - Em “Quando menos se espera...”, sem alteração de sentido, o conectivo em destaque pode ser substituído por

a) embora.

b) desde que.

c) mesmo que.

d) uma vez que.

e) no momento em que.

03 -  “... e os acordes melódicos dos Contos dos Bosques de Viena irrompem do fusca amarrotado, mas digno.” A palavra em destaque no trecho acima significa

a) invadir subitamente.     

b) manifestar-se em alto volume.

c) fazer-se ouvir delicadamente.

d) entrar delicadamente.

e) aparecer misteriosamente.

04 - No trecho “Bem, não é a Nona Sinfonia nem um título menor da grande música, mas não estamos na Sala Cecília Meireles, e isso vale como homenagem especial a um passageiro distinto, que pede por favor”, observamos um narrador que

a) relata como se não conhecesse os pensamentos e sentimentos das personagens.

b) apenas observa os fatos da história.

c) participa da história como personagem.

d) conta uma história e não participa da ação relatada.

e) tudo sabe e conhece o pensamento e os sentimentos das personagens que participam da história.

 

05 -  Em relação à acentuação gráfica, analise as proposições a seguir:

I.             As palavras rádio, negócio e auditório são acentuadas por serem proparoxítonas.

II.            Ninguém e também são acentuadas por serem oxítonas terminadas em “em”.

III.           A palavra agradável é acentuada por ser uma paroxítona terminada em “l”.

IV.          As palavras táxi, será e está obedecem à mesma regra de acentuação.

É correto o que se afirma em

a) I e II.

b) I e III.

c) II e III.

d) I, II e III.

e) I, II e IV.

 

06 - Transportando-se para a voz passiva a frase. “Clarinete dá o recado sem precisar de orquestra”, a forma verbal resultante será:

a) será dado.

b) é dado.

c) está sendo dado.

d) foi dado.

07 - Em “Quando se tem pressa”. O termo sublinhado estabelece relação de:

a) oposição.

b) causa.

c) condição.

d) tempo.

08 - A frase “Quando menos se espera”... (1º parágrafo) relaciona-se com um adjetivo do 2º parágrafo. Assinale o:

a) amarrotado.

b) digno.

c) melódicos.

d) imprevisto.

09 - De acordo com o texto, durante o trajeto percorrido pelo táxi, o passageiro sente-se agradecido por

a) encontrar música, em vez das tragédias diárias noticiadas pelas rádios.

b) poder ajudar o motorista a recuperar o seu clarinete.

c) não ter de pagar a corrida ao motorista do táxi.

d) poder ajudar alguém desanimado a recuperar sua autoestima.

e) poder conversar com alguém que também gosta de música.

 

10 - Na fala do motorista “Ficava me imaginando num palco iluminado, tocando...”, as reticências foram usadas para

a) indicar que alguém interrompeu a fala do motorista.

b) sinalizar uma interrupção brusca da história.

c) representar, na escrita, hesitações comuns na língua falada.

d) sugerir emoção, num intervalo de silêncio.

e) indicar que uma parte da história foi suprimida.

 

11 - No trecho “O senhor já pensou: chamar Tchaikovsky de ‘esse troço’?”, a observação feita por um passageiro provocou no motorista a) ódio.

b) revolta.

c) agressividade.

d) indiferença.

e) raiva.

12 - A frase que encerra a mensagem principal dessa crônica é

a) “Não desanime. O dia em que arranjar outro clarinete – quem sabe?, talvez até seja o mesmo que lhe pertenceu – será uma festa.”

 b) “O importante é gostar de música, tem amor e devoção por música, e está-se vendo que o senhor tem de sobra.”

c) “Ninguém precisa ser grande em nada, desde que cultive alguma coisa bonita na vida.”

d) “Ficava me imaginando num palco iluminado, tocando... Bobagem...”

e) “Não é preciso que gostem de mim, nem que ela goste de mim.”

 

13 - No trecho “Se não gostasse, eu desligava.”, a oração em destaque mantém com a outra do período relação de

a) concessão.

b) finalidade.

c) causa.

d) consequência.

e) condição.

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