CRÔNICA: LAR DESFEITO
Luís Fernando Veríssimo- Vocês nunca brigam?
José e Maria se entreolharam. José respondeu:
- Não, minha filha. Sua mãe e eu não brigamos.
- Nunca brigaram? – quis saber Vítor, o filho do meio.
- Claro que já brigamos, mas sempre fazemos as pazes.
- Na verdade, brigas, mesmo, nunca tivemos. Desentendimentos, como todo mundo.
Mas sempre nos demos muito bem...
- Coisa mais chata – disse Venancinho, o menor.
Vera, a filha mais velha, tinha uma amiga, Nora, que a deixava fascinada com
suas histórias de casa. Os pais de Nora viviam brigando. Era um drama. Nora
contava tudo pra Vera. Ás vezes chorava. Vera consolava a amiga. Mas no fundo
tinha uma certa inveja. Nora era infeliz. Devia ser bacana ser infeliz assim. O
sonho de Vera era ter um problema em casa para poder ser revoltada como Nora.
Ter olheiras como Nora.
Vítor, o filho do meio, frequentava muito a casa de Sérgio, seu melhor amigo.
Os pais de Sérgio estavam separados. O pai de Sérgio tinha um dia certo para
sair com ele. Domingo. Iam ao parque de diversões, ao cinema, ao futebol. O pai
de Sérgio namorava uma moça de teatro. E a mãe de Sérgio recebia visitas de um
senhor muito camarada que sempre trazia presentes para Sérgio. O sonho de Vítor
era ser irmão de Sérgio.
Venancinho, o filho menor, também tinha amigos com problemas em casa. A mãe de
Haroldo tinha uma filha de 11 anos que podia tocar o Danúbio Azul espremendo
uma mão na axila, o que deixava a mãe do Haroldo louca. A mãe do Haroldo
gritava muito com o marido.
Bacana.
- Eu não aguento mais esta situação – disse Vera, na mesa dramática.
- Que situação, minha filha?
- Essa felicidade de vocês!
- Vocês pelo menos deviam ter cuidado de não fazer isso na nossa frente – disse
Vítor.
- Mas nós não fazemos nada!
- Exatamente.
Venancinho batia com o talher na mesa e reivindicava:
- Briga. Briga. Briga.
José e Maria concordavam que aquilo não podia continuar. Precisavam pensar nas
crianças. Antes de mais nada, nas crianças. Manteriam uma fachada de desacordo,
ódio e desconfiança na frente deles, para esconder a harmonia. Não seria fácil.
Inventariam coisas. Trocariam acusações fictícias e insultos. Tudo para não
traumatizar os filhos.
- Víbora não – gritou Maria, começando a erguer-se do seu lugar na mesa com a
faca serrilhada na mão. José também ergueu-se e empurrou a cadeira.
- Víbora sim! Vem que eu te arrebento.
Maria avançou. Vera agarrou-se a seu braço.
- Mamãe. Não!
Vítor segurou seu pai. Venancinho, que estava de boca aberta e olhos
arregalados desde o começo da discussão - a pior até então -, achou melhor
pular da cadeira e procurar um canto neutro da sala de jantar.
Depois daquela cena, nada mais havia a fazer. O casal teria que se separar. Os
advogados cuidariam de tudo. Eles não podiam mais se enxergar.
Agora era Nora que consolava Vera. Os pais eram assim mesmo. Ela tinha
experiência. A família era uma instituição podre. Sozinha, na frente do
espelho, Vera imitava a boca de desdém de Nora.
- Podre. Tudo podre.
E esfregava os olhos, para que ficassem vermelhos. Ainda não tinha olheiras,
mas elas viriam com o tempo. Ela seria amarga e agressiva. A pálida filha de um
lar desfeito. Um pouco de pó-de-arroz talvez ajudasse.
Vítor e Venancinho saíam aos domingos com o pai. Uma vez foram ao Maracanã
junto com o Sérgio e a namorada do pai do Sérgio, a moça do teatro. O pai de
Sérgio perguntou se José não gostaria de conhecer uma amiga de sua namorada.
Assim poderiam fazer mais programas juntos. José disse que achava que não.
Precisava de mais tempo para se acostumar com sua nova situação. Sabe como é.
Maria não tinha namorado. Mas no mínimo duas vezes por semana desaparecia de
casa, depois voltava menos nervosa. Os filhos tinham certeza de que ela ia se
encontrar com um homem.
- Eles desconfiam de alguma coisa? - perguntou José.
- Acho que não – respondeu Maria.
Estavam os dois no motel onde se encontravam, no mínimo duas vezes por semana,
escondidos.
- Será que fizemos o certo?
- Acho que sim. As crianças agora não se sentem mais deslocadas no meio dos
amigos. Fizemos o que tinha de ser feito.
- Será que algum dia vamos poder viver juntos outra vez?
- Quando as crianças saírem de casa. Aí então estaremos livres das convenções
sociais. Não precisaremos manter as aparências. Me beija.
ENTENDENDO A CRÔNICA
1) Qual é o assunto tratado na crônica?
A crônica se fundamenta numa inversão de valores morais.
Comprove
sua resposta com um trecho do texto.
São descritas superficialmente.
Vera tinha inveja de Nora. “Nora era
infeliz. Devia ser bacana ser infeliz assim. O sonho de Vera era ter um
problema em casa para poder ser revoltada como Nora...”
Vitor (filho do meio) – “O sonho dele
era ser irmão de Sergio, que tinham os pais separados, e levava o Sergio todo
domingo ao parque de diversões, ao cinema, ao futebol...”.
Venancinho (filho menor) – Tinha um amigo,
chamado Haroldo que a mãe gritava muito com o marido, ele achava bacana.
3) A linguagem empregada na crônica pode ser classificada com formal ou informal? Por quê? Copie algumas expressões que justifiquem sua resposta.
Linguagem informal, porque utiliza vocabulário simples; é uma
conversa em família sobre o dia a dia.
“Nora contava tudo pra Vera”.
“Aí então, estaremos livres das convenções sociais”.
4) De que forma foi invertida a ordem natural da narrativa, nessa crônica?
Nela, o estado inicial é a felicidade de um casal, e o estado final,
o desentendimento. Quando a ordem seria o contrário, ou seja, de um estado de
contenda para um final feliz.
5) Os filhos ficavam inquietos com a harmonia de seus pais, pois não queriam ter pais felizes. Copie do texto frases dos filhos sobre o assunto.
A filha: O sonho de Vera era ter um problema
em casa...; o filho do meio: Nunca brigaram; o filho menor:
Briga. Briga. Briga.
Os filhos do casal, em contato com a experiência familiar dos seus
colegas, que viviam às voltas com o desentendimento dos pais, estranhavam a
harmonia entre o pai e a mãe.
7) O casal, diante da inquietação dos filhos, que resolvem fazer?
Finge aceitar a manipulação das crianças e decide simular a contenda.
Como a coisa mais chata.
Sim, percebe-se a tendência, na contemporaneidade, da curta
permanência dos casamentos.
10) O foco narrativo é o elemento estrutural da narrativa que compreende a perspectiva, através da qual se conta uma história. Qual a posição do narrador nessa crônica?
Na instância do enunciado, o narrador é onisciente, pois sanciona o
desentendimento positivamente; na enunciação, porém, o cronista/enunciador
constrói uma crítica à desarmonia.
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