quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CRÔNICA: UM CÃO, APENAS - CECÍLIA MEIRELES - COM GABARITO

 Crônica: Um Cão, Apenas   

                   Cecília Meireles

        Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...

        Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

        Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.

        Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

        Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.

        Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

 Inéditos – crônicas. Rio de Janeiro, Bloch, 1967. p. 19-20.

          Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 208-210.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.petz.com.br%2Fblog%2Ffilhotes%2Fdicas-boa-adaptacao-filhote%2F&psig=AOvVaw1wf1w-BK_8MwH_GeB7uNQr&ust=1608335178709000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNCc782Z1u0CFQAAAAAdAAAAABAJ

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Salpicos: manchas, pingos.

·        Inábil: sem habilidade.

·        Dorido: que sente dor, dolorido.

·        Súplica: pedido.

·        Lustro: brilho.

·        Complexo: complicado, intrincado.

·        Vexar: incomodar, afligir.

·        Limiar: entrada, início.

·        Oprimir: causar opressão, humilhação.

·        Andrajoso: vestido de trapos, esfarrapado.

02 – Onde se dá o encontro da narradora com o cãozinho?

      Em um patamar, provavelmente diante da porta de alguma casa.

03 – Por que o cãozinho se levanta ao ver a narradora?

      Acostumado a ser enxotado, ele se levanta já esperando isso.

04 – Em que frase a narradora dá dimensão humana ao sofrimento do cão?

      “... o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas”.

05 – O texto permite inferir algumas características pessoais da narradora. Quais?

      Sensibilidade, compreensão do outro, piedade.

06 – Segundo a narradora, existe uma expectativa do cãozinho. Qual seria?

      Ele fica à espera de uma palavra ou de um gesto, olha-a de modo suplicante.

07 – Qual o verdadeiro sentido de: “Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar”?

      Auxiliar os outros é muito difícil, e é preciso continuar a nossa vida, sempre cheia de compromissos.

08 – De que a narradora se ressente?

      De não poder ajudar todos aqueles que precisam de ajuda. Na verdade, ela procura apenas justificar-se.

09 – Existe um contraste entre a descrição do cãozinho e a descrição do jardim por onde ele passa para retirar-se. Que contraste é esse?

      Os degraus do jardim, ladeados por flores, contrastam com o cãozinho que está velho, sujo, etc.

10 – Por que a narradora afirma: “... amei-o, apenas, com uma caridade inútil...”?

      Porque ela se compadece do cãozinho, mas nada faz de concreto para ajudá-lo.

11 – Sobre o cãozinho, a impressão mais forte que fica no leitor é a de sua:

a)   Humildade.

b)   Fraqueza.

c)   Dignidade.

d)   Determinação.

12 – O texto “Um cão, apenas” nos mostra:

a)   A impossibilidade de uma pessoa ajudar um cãozinho.

b)   Que a velhice e a solidão são inevitáveis para todos os seres.

c)   Que é possível ser digno mesmo nos momentos mais deprimentes.

d)   Que nem sempre se deve fazer o que se tem vontade.

 

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. 😢as vezes somos tão negligentes. Depois que não há o que fazer é pensamos no que poderiamos ter feito.

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