sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

POEMA: CATANDO OS CACOS DO CAOS - AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA - COM GABARITO

 Poema: Catando os cacos do caos

Affonso Romano de Sant’Anna

Catar os cacos do caos, como quem cata no deserto
o cacto - como se fosse flor.
Catar os restos e ossos da utopia, como de porta em porta
o lixeiro apanha detritos da festa fria e pobre no crepúsculo se aquece na fogueira erguida com os destroços do dia.

Catar a verdade contida em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas, no pelo - do dia cão.

Recortar o sentido, como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso com a inconsútil emenda
à vista.

Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.

Catar os cacos de Dionísio e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido beber o vinho, ou sangue vertido.

Catar os cacos de Orfeu partido, pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer o fígado - como era antes.

Catar palavras cortantes no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras o brilho do diamante.

É um quebra-cabeça? Então de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada deixar gravada a emoção

Cacos de mim, Cacos do não, Cacos do sim, Cacos do antes
Cacos do fim

Não é dentro nem fora, embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora, que violento o sentido nos deflora.

Catar os cacos do presente e outrora e enfrentar a noite
com o vitral da aurora

                                            Affonso Romano de Sant’Anna

Entendendo o poema:

01 – De que se trata o poema?

      Trata-se de retalhos de vida que passamos a construir das peças que sempre sobram... como são cacos têm arestas e nem sempre é fácil encaixá-los no lugar certo.

02 – Na primeira estrofe o eu lírico fala em catar cacos, de onde?

      Mostra que o cacos se intensifica nos cacos. São estilhaços da alma espalhados no cotidiano.

03 – Por que o eu lírico evoca o precioso gesto de catar?

      Catar é juntar, é ultrapassar barreiras, incômodos fortalezas, cactos. Verter cacto em flor.

04 – Utopias invadem as almas em momentos aflitos, e como seria catar os restos da utopia?

      É dar voz ao coração regado pela liberdade, e a liberdade está nas palavras.

05 – Nos versos: “Catar os cacos de Dionísio e Baco, no mosaico antigo / e no copo seco erguido beber o vinho, ou sangue vertido.”. O eu lírico nesses versos cita o copo erguido, por quê?

      Talvez Dionísio e Baco estavam clamando pelo vinho, o vinho da concórdia, da audácia poética, necessária para que o mundo se reencontre na poesia.

 

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