Poema: Catando os cacos do caos
Affonso Romano de Sant’AnnaCatar os cacos do caos, como quem cata no deserto
o cacto - como se fosse flor.
Catar os restos e ossos da utopia, como de porta em porta
o lixeiro apanha detritos da festa fria e pobre no crepúsculo se aquece na
fogueira erguida com os destroços do dia.
Catar a verdade contida em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas, no pelo - do dia cão.
Recortar o sentido, como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionísio e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido beber o vinho, ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido, pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer o fígado - como era antes.
Catar palavras cortantes no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça? Então de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada deixar gravada a emoção
Cacos de mim, Cacos do não, Cacos do sim, Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro nem fora, embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora, que violento o sentido nos deflora.
Catar os cacos do presente e outrora e enfrentar a noite
com o vitral da aurora
Affonso Romano de Sant’Anna
Entendendo o poema:
01 – De que se trata o
poema?
Trata-se de retalhos de vida que passamos
a construir das peças que sempre sobram... como são cacos têm arestas e nem
sempre é fácil encaixá-los no lugar certo.
02 – Na primeira estrofe o
eu lírico fala em catar cacos, de onde?
Mostra que o
cacos se intensifica nos cacos. São estilhaços da alma espalhados no cotidiano.
03 – Por que o eu lírico
evoca o precioso gesto de catar?
Catar é juntar, é ultrapassar barreiras,
incômodos fortalezas, cactos. Verter cacto em flor.
04 – Utopias invadem as
almas em momentos aflitos, e como seria catar os restos da utopia?
É dar voz ao coração regado pela liberdade, e a liberdade
está nas palavras.
05 – Nos versos: “Catar os cacos de Dionísio e Baco, no
mosaico antigo / e no copo seco erguido beber o vinho, ou sangue vertido.”.
O eu lírico nesses versos cita o copo erguido, por quê?
Talvez Dionísio e
Baco estavam clamando pelo vinho, o vinho da concórdia, da audácia poética,
necessária para que o mundo se reencontre na poesia.
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