Conto: O embondeiro que sonhava pássaros
Mia Couto
Esse homem sempre vai ficar
de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade,
seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso,
ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha
sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele
passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo
fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de
prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros
esvoavam suas cores repentinas. À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios,
tantos que faziam mexer as janelas: - Mãe, olha o homem dos passarinheiros! E
os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das
aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska e harmonicava
sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava. Por trás das cortinas, os
colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos
- aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara
aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse
ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam
os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. Mas aquela ordem pouco seria
desempenhada. [...] O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com
os demais colonos. No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as
visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa
que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria
de pensar. No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os
colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas.
Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia coisa
deste verídico mundo. O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de
si: - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora. Os
portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas?
onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? O vendedor se
segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias
suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles
careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo
dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres,
concluíam. Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade
é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do
cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele
se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se
estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela
terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes?
[...] O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas
ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo.
[...] As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes
existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. [...]
Os pais lhes queriam fechar
o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida,
vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras.
COUTO, Mia. Cada
homem é uma raça: contos/ Mia Couto - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras,
2013. p.63 - 71. (Fragmento).
Entendendo o conto
1) Qual a temática do conto?
O racismo, a rejeição aos negros, ou seja, a segregação racial.
2) Onde ocorreram os fatos?
Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas
enormes gaiolas.
3) Qual a história contada? Resuma os fatos que compõem a ação narrada.
Um vendedor de pássaros que circula em um bairro de brancos com suas
aves exóticas muda todo o cotidiano daquele bairro do cimento, pois as casas se
repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores,
mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra.
4) O enredo desse conto está centrado em que período da história mundial?
Está centrado no período da colonização em Moçambique.
5) Se pudesse alterar alguma situação nesse conto, qual seria? Por quê?
Resposta pessoal.
6) Sobre os elementos destacados do fragmento “Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida.”, leia as afirmativas.
I. A expressão EM VERDADE pode ser
substituída, sem alteração de sentido por COM EFEITO.
II.
ERA O SOL formam o predicado verbal da primeira oração.
a) I e III.
b) III.
c) I e II.
d) I.
e) II e III.
7) Do ponto de vista da norma culta, a única substituição
pronominal realizada que feriu a regra de colocação foi:
a) " Os
brancos se inquietavam com aquela desobediência” = Os brancos inquietavam-se
com aquela desobediência.
b) " O
remédio, enfim, se haveria de pensar." = O remédio, enfim, haver-se-ia de
pensar.
c) " Eles se igualam aos bichos silvestres,
concluíam” = Eles igualam-se aos bichos silvestres, concluíam.
d) "O mundo inteiro se fabulava." = O mundo
inteiro fabulava-se.
e) "Chamavam-lhe o passarinho."= Lhe
chamavam o passarinheiro.
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