Crônica: SALVE-SE QUEM PUDER
Pedro Bial Volta e meia, alguém pergunta como anda
a minha adaptação ao Brasil. Vai indo, digo eu, disfarçando o fato de que nunca
me adaptei a lugar nenhum, ainda que me adapte a qualquer lugar. Não estranho
cama ou travesseiro, ou a ausência deles. Estranho, sim, qualquer tipo de
permanência.
Para ser sucinto e direto, a melhor
maneira de falar sobre a minha (ou melhor nossa, minha e de minhas crianças)
adaptação ou inadaptação, é comentar o trânsito nas grandes cidades
brasileiras.
Toda a nossa falta de civilidade e o
nosso pouco apreço pela vida ficam evidentes na loucura de nosso tráfego.
O caso da demissão de nosso ministro,
dos transportes!, é exemplar.
O que passa pela cabeça de uma das mais
altas figuras da República ao fugir covardemente da cena de um atropelamento?
Se o destino não tivesse urdido a presença de uma testemunha casual teria sido
mais um caso, uma causa e nenhuma consequência na selvageria assassina de
nossas ruas.
Cada um de nossos motoristas dirige
contra todos os outros, em vez de conduzir a favor de sua própria segurança.
Mas, como diria o esquartejador, vamos
por partes:
-- A impressão que se tem é de que se
as buzinas dos carros brasileiros pifassem, ninguém sairia de casa. Nossos
automóveis parecem movidos a buzina...
-- Junte-se a buzina ao raro evento de
alguém parar no sinal vermelho. Na melhor das hipóteses, o carro que vem atrás
buzina para que o da frente avance. Na maior parte das vezes, a buzinada é
acompanhada de uma aceleração ameaçadora. Também é comum o sujeito ir
aproximando os pára-choques como se estivesse pronto a passar por cima. Como é
que alguém ousa parar no sinal vermelho?
E tem a célebre definição de Millôr
Fernandes de fração de segundo: o tempo entre o sinal abrir e alguém buzinar
atrás de você.
-- O que a nossa imbecilidade coletiva
não consegue enxergar é que se não respeitamos os vermelhos, não podemos confiar
nos verdes. Cada cruzamento é uma roleta-russa.
-- Seguir o carro da frente parece
humilhação. Se alguém vai em sua dianteira, a obrigação do motorista brasileiro
é ultrapassar. Em geral, o sujeito não tem pressa; é apenas parte da
mentalidade “autopista” onipresente em nosso asfalto.
-- Ultrapassar pela esquerda não
satisfaz. Bom é cortar pela direita, de surpresa, acrescentando algum gesto
obsceno ou sonoro palavrão à ultrapassagem pela direita.
-- O ziguezague! De preferência dentro
de um túnel movimentado. Na Inglaterra, como na maioria dos países civilizados,
o ziguezague dá cadeia. Principalmente, porque quando faz o ziguezague, o
motorista denuncia a si mesmo. O impulso de mudar de pista, cortando todos os
outros veículos, é típico de motoristas alcoolizados.
-- Consideramos absolutamente normal
beber e dirigir. No resto do mundo, o motorista pilhado bêbado ao volante é
conduzido ao xadrez como um assassino.
-- E os ônibus... Ah, os ônibus! Em
qualquer grande cidade do mundo, o trânsito só flui graças a pistas exclusivas
para os transportes coletivos. Os ônibus ganham a sua faixa própria mas não
ousam trafegar pelas outras pistas. Já por aqui, todas as pistas são invadidas
e monopolizadas pelos monstros barulhentos e malcheirosos. A agressividade de
seus motoristas pode ser explicada pelos baixos salários e falta de condições
de trabalho, mas não deve ser perdoada.
Crônicas de um
repórter. São Paulo, Objetiva, 1996.
Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 126-8.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.
·
Roleta-russa:
jogo com revólver que contém apenas uma bala.
·
Apreço: estima, consideração.
·
Urdido: tramado, tecido.
·
Onipresente: presente em todos os lugares.
·
Esquartejador: aquele que corta em pedaços.
·
Obsceno: imoral.
·
Evento: acontecimento.
·
Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.
·
Hipótese: ideia ou explicação não provada.
02 – Como se sente o
narrador em relação ao Brasil?
Ele ainda está em
processo de adaptação.
03 – Qual o fato que deu
origem à crônica?
A demissão de um ministro dos transportes
flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.
04 – Por que o narrador
escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?
Porque o tema
demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.
05 – Como dirigem, segundo o
texto, os motoristas brasileiros?
Dirigem contra todos os outros
motoristas.
06 – Qual a consequência
principal do estilo brasileiro de dirigir?
O elevado número
de acidentes.
07 – Como você interpreta
esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?
Resposta pessoal do aluno.
08 – Como se sente o
narrador em relação ao trânsito brasileiro?
Sente-se mal, critica a
irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.
09 – O texto contém várias críticas
aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
♡
ResponderExcluir