quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

CRÔNICA: SALVE-SE QUEM PUDER - PEDRO BIAL - COM GABARITO

 Crônica: SALVE-SE QUEM PUDER

                Pedro Bial

        Volta e meia, alguém pergunta como anda a minha adaptação ao Brasil. Vai indo, digo eu, disfarçando o fato de que nunca me adaptei a lugar nenhum, ainda que me adapte a qualquer lugar. Não estranho cama ou travesseiro, ou a ausência deles. Estranho, sim, qualquer tipo de permanência.

        Para ser sucinto e direto, a melhor maneira de falar sobre a minha (ou melhor nossa, minha e de minhas crianças) adaptação ou inadaptação, é comentar o trânsito nas grandes cidades brasileiras.

        Toda a nossa falta de civilidade e o nosso pouco apreço pela vida ficam evidentes na loucura de nosso tráfego.

        O caso da demissão de nosso ministro, dos transportes!, é exemplar.

        O que passa pela cabeça de uma das mais altas figuras da República ao fugir covardemente da cena de um atropelamento? Se o destino não tivesse urdido a presença de uma testemunha casual teria sido mais um caso, uma causa e nenhuma consequência na selvageria assassina de nossas ruas.

        Cada um de nossos motoristas dirige contra todos os outros, em vez de conduzir a favor de sua própria segurança.

        Mas, como diria o esquartejador, vamos por partes:

        -- A impressão que se tem é de que se as buzinas dos carros brasileiros pifassem, ninguém sairia de casa. Nossos automóveis parecem movidos a buzina...

        -- Junte-se a buzina ao raro evento de alguém parar no sinal vermelho. Na melhor das hipóteses, o carro que vem atrás buzina para que o da frente avance. Na maior parte das vezes, a buzinada é acompanhada de uma aceleração ameaçadora. Também é comum o sujeito ir aproximando os pára-choques como se estivesse pronto a passar por cima. Como é que alguém ousa parar no sinal vermelho?

        E tem a célebre definição de Millôr Fernandes de fração de segundo: o tempo entre o sinal abrir e alguém buzinar atrás de você.

        -- O que a nossa imbecilidade coletiva não consegue enxergar é que se não respeitamos os vermelhos, não podemos confiar nos verdes. Cada cruzamento é uma roleta-russa.

        -- Seguir o carro da frente parece humilhação. Se alguém vai em sua dianteira, a obrigação do motorista brasileiro é ultrapassar. Em geral, o sujeito não tem pressa; é apenas parte da mentalidade “autopista” onipresente em nosso asfalto.

        -- Ultrapassar pela esquerda não satisfaz. Bom é cortar pela direita, de surpresa, acrescentando algum gesto obsceno ou sonoro palavrão à ultrapassagem pela direita.

        -- O ziguezague! De preferência dentro de um túnel movimentado. Na Inglaterra, como na maioria dos países civilizados, o ziguezague dá cadeia. Principalmente, porque quando faz o ziguezague, o motorista denuncia a si mesmo. O impulso de mudar de pista, cortando todos os outros veículos, é típico de motoristas alcoolizados.

        -- Consideramos absolutamente normal beber e dirigir. No resto do mundo, o motorista pilhado bêbado ao volante é conduzido ao xadrez como um assassino.

        -- E os ônibus... Ah, os ônibus! Em qualquer grande cidade do mundo, o trânsito só flui graças a pistas exclusivas para os transportes coletivos. Os ônibus ganham a sua faixa própria mas não ousam trafegar pelas outras pistas. Já por aqui, todas as pistas são invadidas e monopolizadas pelos monstros barulhentos e malcheirosos. A agressividade de seus motoristas pode ser explicada pelos baixos salários e falta de condições de trabalho, mas não deve ser perdoada.

                 Crônicas de um repórter. São Paulo, Objetiva, 1996.

       Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 126-8.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.

·        Roleta-russa: jogo com revólver que contém apenas uma bala.

·        Apreço: estima, consideração.

·        Urdido: tramado, tecido.

·        Onipresente: presente em todos os lugares.

·        Esquartejador: aquele que corta em pedaços.

·        Obsceno: imoral.

·        Evento: acontecimento.

·        Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.

·        Hipótese: ideia ou explicação não provada.

02 – Como se sente o narrador em relação ao Brasil?

      Ele ainda está em processo de adaptação.

03 – Qual o fato que deu origem à crônica?

      A demissão de um ministro dos transportes flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.

04 – Por que o narrador escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?

      Porque o tema demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.

05 – Como dirigem, segundo o texto, os motoristas brasileiros?

      Dirigem contra todos os outros motoristas.

06 – Qual a consequência principal do estilo brasileiro de dirigir?

      O elevado número de acidentes.

07 – Como você interpreta esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?

      Resposta pessoal do aluno.

08 – Como se sente o narrador em relação ao trânsito brasileiro?

      Sente-se mal, critica a irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.

09 – O texto contém várias críticas aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

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