quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CRÔNICA: BOM PROVEDOR - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Bom provedor

                 Luís Fernando Veríssimo

        Foi um escândalo quando a Vaninha – logo a Vaninha, tão delicada – apresentou o noivo às amigas. Era um troglodita.

        -- Não – contou a Ceres, depois. – Não é força de expressão. É um troglodita mesmo. Ele babou na minha frente. Ele babou na minha frente!

        O noivo babava. Seu vocabulário era limitado. Duas ou três interjeições e algumas palavras que só a Vaninha entendia e interpretava para os outros.

        -- Ele disse que tem muito prazer em conhecê-la, mamãe.

        -- Pensei que estivesse latindo.

        É preciso dizer que a Vaninha, coitada, vinha de um casamento malsucedido, com intelectual brilhante mas complicado, e tinha dois filhos para criar. E quando sua mãe, incapaz de se controlar depois de ver o futuro genro tirar o sapato e a meia e coçar a sola do pé na frente de todo o mundo, enquanto a Vaninha fingia que não via, disse "Francamente!", respondeu simplesmente:

        -- Digam o que disserem, ele é um bom provedor.

        Para espanto e indignação de todos, Vaninha casou com o troglodita. As amigas se distanciaram dela. Não era possível. O que a Vaninha, logo a Vaninha, formada em História da Arte, vira naquele monstro? Mas um dia, meses depois do casamento, a Ceres encontrou a mãe da Vaninha. E ouviu dela, estarrecida, um elogio ao genro.

        -- É um bom provedor.

        As amigas resolveram investigar. A Ceres, designada como patrulha avançada, foi visitar a Vaninha. Encontrou-a na cozinha da casa de subúrbio para onde se mudara com o troglodita e os dois filhos, retalhando um boi inteiro. O marido estava sentado no chão, num canto da cozinha, chupando um osso. Vaninha explicou que ele só se interessava por um determinado osso do boi. Saía de casa sem dizer para onde ia e voltava com um boi inteiro, ainda quente, sobre os ombros. E salivando com a antecipação do osso. O que sobrava do boi ficava para o resto da família. A Vaninha não perguntava para onde ele ia nem como matava o boi. O importante era que o freezer estava cheio de carne. A Ceres não queria levar um pedaço de carne para casa?

        Naquela mesma noite o marido da Ceres, Carlos Augusto, um homem elegantíssimo, bem articulado, campeão de gamão, depois de avisar que era preciso cortar as despesas da casa, que a situação na galeria não estava boa não, ouviu da mulher uma palavra forte e inédita.

        -- O que foi que você disse, Ceres?

        -- Imprestável!

        A Ceres passou a visitar a Vaninha regularmente. Aliás, todas as amigas da Vaninha foram se reaproximando dela, uma a uma. Passavam a tarde com a Vaninha, conversavam, riam muito, e sempre levavam um pedaço de carne para casa. Comentando que "Marido era aquele! Não o que elas tinham em casa! Babava, mas e daí?".

Novas comédias da vida privada. 123 crônicas escolhidas. São Paulo, L&PM, 1996.

    Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 115-17.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Troglodita: homem primitivo, brutal.

·        Designada: nomeada, indicada para a realização de uma tarefa.

·        Força de expressão: exagero ao emitir julgamento sobre alguém ou alguma coisa.

·        Bem articulado: que fala bem.

·        Interjeições: palavras que exprimem emoções.

·        Gamão: tipo de jogo com tabuleiro.

·        Provedor: aquele que sustenta a casa.

·        Galeria: loja onde se vendem quadros e objetos de arte.

·        Estarrecida: muito espantada.

·        Inédita: nunca usada; original, incomum.

·        Imprestável: que não presta para nada.

02 – Compare Vaninha com o marido “troglodita”. O que você percebe?

      Vaninha é totalmente diferente ao marido. São pessoas opostas: ela é delicada e ele, um troglodita, um tipo grosseiro.

03 – Compare o primeiro marido da Vaninha com o segundo. O que você percebe?

      Também são pessoas totalmente diferentes. O primeiro é intelectual e complicado, o segundo, troglodita e simples.

04 – Quais são as informações sobre o marido da Vaninha presentes no texto? Ele é uma pessoa normal?

      O marido não fala, baba, coça o pé na frente dos outros, come osso de boi sentado no chão. Não parece ser uma pessoa normal.

05 – A personalidade de Vaninha é descrita em todos os detalhes ou apenas alguns pontos dela são ressaltados?

      Apenas alguns pontos, como sua delicadeza, sua formação intelectual e o fracasso do casamento anterior são mencionados.

06 – Por que Vaninha se casou com o troglodita? Comente a escolha feita.

      Vaninha casou-se porque ele era um bom provedor. Comentário pessoal.

07 – Como o casamento dela foi recebido pelas amigas?

      O casamento foi recebido com espanto e indignação.

08 – Por que, afinal, as amigas aceitaram o casamento da Vaninha?

      Porque perceberam que ela viva bem com o marido, pois ele, como bom provedor, não permitia que o freezer ficasse vazio.

09 – Por que Ceres ofendeu o marido chamando-o de “imprestável”?

      Porque, embora educado e gentil, Carlos Augusto não era um bom provedor.

10 – Você acredita que seria possível a história contada por Luís Fernando Veríssimo acontecer na realidade? Fundamente sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O autor leva as situações ao extremo para obter um efeito cômico, por meio do qual tece sua crítica de costumes.

11 – Indique quais das frases abaixo refletem o mesmo posicionamento de Vaninha e de suas amigas diante da vida e do casamento.

a)   “Prefira sempre necessitar menos a possuir mais”. (Thomas Kempis).

b)   “Felicidade: uma boa conta bancária, uma boa cozinheira e uma boa digestão”. (Rousseau).

c)   “O marido que quiser ter um casamento feliz deve aprender a conservar a boca fechada e o talão de cheques aberto”. (Groucho Marx).

d)   “A gente não quer só comida / A gente quer comida, diversão e arte / ...A gente não quer só dinheiro / A gente quer inteiro e não pela metade”. (Titãs).

e)   “Meu marido bebe e me maltrata, mas não me separo dele porque não deixa faltar nada em casa”. (Depoimento na TV).

f)    “Beleza não se põe na mesa.” (Provérbio).

12 – Para você, qual teria sido o objetivo do autor ao escrever o texto?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

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