Crônica: Bom provedor
Luís Fernando Veríssimo Foi um escândalo quando a Vaninha –
logo a Vaninha, tão delicada – apresentou o noivo às amigas. Era um troglodita.
-- Não – contou a Ceres, depois. – Não é
força de expressão. É um troglodita mesmo. Ele babou na minha frente. Ele babou
na minha frente!
O noivo babava. Seu vocabulário era
limitado. Duas ou três interjeições e algumas palavras que só a Vaninha
entendia e interpretava para os outros.
-- Ele disse que tem muito prazer em
conhecê-la, mamãe.
-- Pensei que estivesse latindo.
É preciso dizer que a Vaninha, coitada,
vinha de um casamento malsucedido, com intelectual brilhante mas complicado, e
tinha dois filhos para criar. E quando sua mãe, incapaz de se controlar depois
de ver o futuro genro tirar o sapato e a meia e coçar a sola do pé na frente de
todo o mundo, enquanto a Vaninha fingia que não via, disse
"Francamente!", respondeu simplesmente:
-- Digam o que disserem, ele é um bom provedor.
Para espanto e indignação de todos,
Vaninha casou com o troglodita. As amigas se distanciaram dela. Não era
possível. O que a Vaninha, logo a Vaninha, formada em História da Arte, vira
naquele monstro? Mas um dia, meses depois do casamento, a Ceres encontrou a mãe
da Vaninha. E ouviu dela, estarrecida, um elogio ao genro.
-- É um bom provedor.
As amigas resolveram investigar. A
Ceres, designada como patrulha avançada, foi visitar a Vaninha. Encontrou-a na
cozinha da casa de subúrbio para onde se mudara com o troglodita e os dois
filhos, retalhando um boi inteiro. O marido estava sentado no chão, num canto
da cozinha, chupando um osso. Vaninha explicou que ele só se interessava por um
determinado osso do boi. Saía de casa sem dizer para onde ia e voltava com um
boi inteiro, ainda quente, sobre os ombros. E salivando com a antecipação do
osso. O que sobrava do boi ficava para o resto da família. A Vaninha não
perguntava para onde ele ia nem como matava o boi. O importante era que
o freezer estava cheio de carne. A Ceres não queria levar um pedaço
de carne para casa?
Naquela mesma noite o marido da Ceres,
Carlos Augusto, um homem elegantíssimo, bem articulado, campeão de gamão,
depois de avisar que era preciso cortar as despesas da casa, que a situação na
galeria não estava boa não, ouviu da mulher uma palavra forte e inédita.
-- O que foi que você disse, Ceres?
-- Imprestável!
A Ceres passou a visitar a Vaninha
regularmente. Aliás, todas as amigas da Vaninha foram se reaproximando dela,
uma a uma. Passavam a tarde com a Vaninha, conversavam, riam muito, e sempre
levavam um pedaço de carne para casa. Comentando que "Marido era aquele!
Não o que elas tinham em casa! Babava, mas e daí?".
Novas comédias da
vida privada. 123 crônicas escolhidas. São Paulo, L&PM, 1996.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 115-17.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Troglodita: homem primitivo, brutal.
·
Designada: nomeada, indicada para a realização de uma tarefa.
·
Força
de expressão: exagero ao emitir
julgamento sobre alguém ou alguma coisa.
·
Bem
articulado: que fala bem.
·
Interjeições: palavras que exprimem emoções.
·
Gamão: tipo de jogo com tabuleiro.
·
Provedor: aquele que sustenta a casa.
·
Galeria: loja onde se vendem quadros e objetos de arte.
·
Estarrecida: muito espantada.
·
Inédita: nunca usada; original, incomum.
·
Imprestável: que não presta para nada.
02 – Compare Vaninha com o
marido “troglodita”. O que você percebe?
Vaninha é totalmente diferente ao marido.
São pessoas opostas: ela é delicada e ele, um troglodita, um tipo grosseiro.
03 – Compare o primeiro marido
da Vaninha com o segundo. O que você percebe?
Também são pessoas totalmente diferentes.
O primeiro é intelectual e complicado, o segundo, troglodita e simples.
04 – Quais são as
informações sobre o marido da Vaninha presentes no texto? Ele é uma pessoa
normal?
O marido não
fala, baba, coça o pé na frente dos outros, come osso de boi sentado no chão.
Não parece ser uma pessoa normal.
05 – A personalidade de
Vaninha é descrita em todos os detalhes ou apenas alguns pontos dela são
ressaltados?
Apenas alguns
pontos, como sua delicadeza, sua formação intelectual e o fracasso do casamento
anterior são mencionados.
06 – Por que Vaninha se
casou com o troglodita? Comente a escolha feita.
Vaninha casou-se
porque ele era um bom provedor. Comentário pessoal.
07 – Como o casamento dela
foi recebido pelas amigas?
O casamento foi
recebido com espanto e indignação.
08 – Por que, afinal, as
amigas aceitaram o casamento da Vaninha?
Porque perceberam
que ela viva bem com o marido, pois ele, como bom provedor, não permitia que o
freezer ficasse vazio.
09 – Por que Ceres ofendeu o
marido chamando-o de “imprestável”?
Porque, embora
educado e gentil, Carlos Augusto não era um bom provedor.
10 – Você acredita que seria
possível a história contada por Luís Fernando Veríssimo acontecer na realidade?
Fundamente sua resposta.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O
autor leva as situações ao extremo para obter um efeito cômico, por meio do
qual tece sua crítica de costumes.
11 – Indique quais das
frases abaixo refletem o mesmo posicionamento de Vaninha e de suas amigas
diante da vida e do casamento.
a)
“Prefira sempre necessitar menos a
possuir mais”. (Thomas Kempis).
b)
“Felicidade: uma boa conta
bancária, uma boa cozinheira e uma boa digestão”. (Rousseau).
c)
“O marido que quiser ter um
casamento feliz deve aprender a conservar a boca fechada e o talão de cheques
aberto”. (Groucho Marx).
d)
“A gente não quer só comida / A gente quer
comida, diversão e arte / ...A gente não quer só dinheiro / A gente quer
inteiro e não pela metade”. (Titãs).
e)
“Meu marido bebe e me maltrata, mas
não me separo dele porque não deixa faltar nada em casa”. (Depoimento na TV).
f)
“Beleza não se põe na mesa.”
(Provérbio).
12 – Para você, qual teria
sido o objetivo do autor ao escrever o texto?
Resposta pessoal
do aluno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário