Crônica: Quantas palavras você disse hoje?
Raul Drewnick
A vontade de conversar anda cada vez
mais em falta em São Paulo. Cansado, acossado pelas contas a pagar,
mal-humorado por mil e um motivos, o paulistano hoje fala a língua travada dos
monossílabos. Com os parentes, com os vizinhos, com os amigos – também cada vez
mais raros –, nós nos limitamos ao sim, ao não, ao é, ao fui, ao sei, quando
não recorremos aos grunhidos: ahn, hem, ohm, uhm.
Se nada mudar, logo as 150 ou 200
palavras que usamos para expressar nossas emoções e nossos sentimentos, nossas frustações
e nossas alegrias, nosso carinho e nosso rancor, nossos sonhos e nossas
desilusões, nosso afetos e nosso desamor estarão reduzidas a 40 ou, quem sabe,
50.
Ninguém precisa falar conosco, para nos
definir. Basta olhar para nós. Somos o que o nosso rosto não esconde e nosso
olhar inamistoso revela: magoados, sofridos, desencantados. Sorrir para quem,
se aquele para quem sorrimos pode nos cercar na próxima esquina e nos apontar
um revólver para roubar os minguados reais de nossa carteira? Falar com quem,
se ninguém quer falar com ninguém? Somos robôs programados para o essencial e
já faz muito tempo que o essencial não inclui a convivência.
Se bater um papo é difícil, manter um
diálogo é uma impossibilidade. Já reparou nas caras feias que logo se armam
quando numa reunião alguém comete o pecado mortal de tentar pôr em circulação
um assunto que não seja o futebol, a vida íntima dos astros do cinema e da TV
ou a nova maravilha em dietas ou regimes?
Experimente citar, ainda que bem de
leve, aquele programa que você às vezes vê na TV Cultura ou manifeste sua
indignação com a Globo por ela ter tirado do ar os Concertos Internacionais.
Ninguém lhe dirá nada, porque falar
cansa. Mas você lerá em todos os rostos algo mais ou menos assim: – Ah, qual é
a desse cara? Se a dona da casa não enfiar logo um sanduíche na boca desse
cretino, já já ele vai vir com aquela caretice de literatura engajada e
imortalidade da alma.
Sem ter com quem conversar, às vezes um
dos nossos se põe a falar sozinho por aí. Você já viu alguns deles pela cidade
– um na Avenida Paulista, um no Largo do Arouche, um na Avenida São João.
Alguns, mais modestos, andam pelos bairros da periferia. E falam, falam, falam
sem parar. Falam para os carros, para os passarinhos, para as árvores, para os
postes. Não falam conosco. Já tentaram, em outro tempo, e enlouqueceram de
tanto tentar.
Ontem, vi um desses desvairados. Entrei
numa dessas agências bancárias em que não há funcionários, só máquinas, e o vi
conversando com uma delas.
A máquina pedia: – Digite sua senha.
Ele digitava e dizia: – OK.
A máquina sugeria: – Digite o valor dos
cheques depositados.
Ele digitava e agradecia: – Obrigado.
Aí ele errava, e a máquina repetia: –
Digite o valor dos cheques depositados.
Ele digitava de novo e se eximia: –
Desculpe, hoje eu estou atrapalhado.
A conversa continuou, enquanto eu, na
minha máquina, muda, sacava um dinheirinho. Enfiei as notas no bolso, saí e fiquei
um minuto ou dois lendo as manchetes numa banca. Quando me dispus a retomar meu
caminho, quem foi que se aproximou de mim? O homem, aquele. Olhou-me com
simpatia e me perguntou: – Tudo bem?
Entrei em pânico. Ele, então, levantou
a mão e me cumprimentou: – Até logo e boa sorte.
Enquanto eu, estupefato, não sabia se
respondia ou não, ele atravessou a rua e se foi. Era um louco, só podia ser.
Falava e, além de falar, sorria.
O Estado de São
Paulo, 25 nov. 1997.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 95-7.
Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fvariosexemplos.blogspot.com%2F2019%2F08%2Fcomo-separar-em-silabas-palavra-exemplo.html&psig=AOvVaw2WA-bDHIXJPAFZHN_SC7R_&ust=1607125808068000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCIjCibeAs-0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo a Crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Acossado: pressionado.
·
Convivência: ação ou efeito de conviver, trato diário.
·
Recorremos: lançamos mão de, usamos.
·
Engajada:
comprometida com a vida política.
·
Grunhidos: resmungos.
·
Periferia: subúrbio, região afastada do centro da cidade.
·
Rancor: raiva.
·
Desvairados: loucos, dementes.
·
Desamor: ausência de amor.
·
Digite: use o teclado de uma máquina.
·
Inamistoso: agressivo.
·
Eximia-se: desculpava-se.
·
Minguados: poucos.
·
Estupefato: espanto.
02 – Onde se ambienta a ação
do texto?
A ação do texto ocorre em São Paulo.
03 – O problema apresentado pelo
texto pode acontecer somente naquele local? Como é isso na sua cidade?
Não, esse
problema pode acontecer em qualquer grande cidade do mundo. Resposta pessoal do
aluno.
04 – Segundo o texto:
a)
Quais as razões para o silêncio das pessoas
nas ruas?
O cansaço, os problemas, as dificuldades econômicas, as decepções, o
medo.
b)
Quais são os temas discutidos em reuniões?
Faça um comentário a respeito.
Os temas são o futebol, a vida íntima de astros de cinema e
televisão e dietas ou regimes novos.
c)
O que acontece com aquelas pessoas que querem
conversar sobre assuntos mais sérios?
Algumas dessas pessoas começam a falar sozinhas, consigo mesmas.
05 – Na sua opinião, por que
o texto diz que “somos robôs programados para o essencial”?
Resposta pessoal
do aluno.
06 – Qual é o problema
humano que o texto discute? Faça um comentário a respeito.
O texto discute a
dificuldade de comunicação entre as pessoas imposta pela correria do dia-a-dia.
07 – Como você entendeu o
episódio narrado no final do texto?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: é um recurso do autor
para, por meio de uma situação externa, chamar a atenção sobre o problema que
comenta na crônica: a incomunicabilidade, o isolamento em que vivemos.
08 – A crônica discute um
problema enfrentado por que faixa etária?
A crônica discute
o problema da solidão enfrentado pelos adultos.
09 – Você concorda com a
análise do cronista? Faça um comentário a respeito.
Resposta pessoal
do aluno.
muito bom amei, me ajudou muito continue assim.
ResponderExcluir