quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CRÔNICA: QUANTAS PALAVRAS VOCÊ DISSE HOJE? RAUL DREWNICK - COM GABARITO

 Crônica: Quantas palavras você disse hoje?

              Raul Drewnick

    A vontade de conversar anda cada vez mais em falta em São Paulo. Cansado, acossado pelas contas a pagar, mal-humorado por mil e um motivos, o paulistano hoje fala a língua travada dos monossílabos. Com os parentes, com os vizinhos, com os amigos – também cada vez mais raros –, nós nos limitamos ao sim, ao não, ao é, ao fui, ao sei, quando não recorremos aos grunhidos: ahn, hem, ohm, uhm.

        Se nada mudar, logo as 150 ou 200 palavras que usamos para expressar nossas emoções e nossos sentimentos, nossas frustações e nossas alegrias, nosso carinho e nosso rancor, nossos sonhos e nossas desilusões, nosso afetos e nosso desamor estarão reduzidas a 40 ou, quem sabe, 50.

        Ninguém precisa falar conosco, para nos definir. Basta olhar para nós. Somos o que o nosso rosto não esconde e nosso olhar inamistoso revela: magoados, sofridos, desencantados. Sorrir para quem, se aquele para quem sorrimos pode nos cercar na próxima esquina e nos apontar um revólver para roubar os minguados reais de nossa carteira? Falar com quem, se ninguém quer falar com ninguém? Somos robôs programados para o essencial e já faz muito tempo que o essencial não inclui a convivência.

        Se bater um papo é difícil, manter um diálogo é uma impossibilidade. Já reparou nas caras feias que logo se armam quando numa reunião alguém comete o pecado mortal de tentar pôr em circulação um assunto que não seja o futebol, a vida íntima dos astros do cinema e da TV ou a nova maravilha em dietas ou regimes?

        Experimente citar, ainda que bem de leve, aquele programa que você às vezes vê na TV Cultura ou manifeste sua indignação com a Globo por ela ter tirado do ar os Concertos Internacionais.

        Ninguém lhe dirá nada, porque falar cansa. Mas você lerá em todos os rostos algo mais ou menos assim: – Ah, qual é a desse cara? Se a dona da casa não enfiar logo um sanduíche na boca desse cretino, já já ele vai vir com aquela caretice de literatura engajada e imortalidade da alma.

        Sem ter com quem conversar, às vezes um dos nossos se põe a falar sozinho por aí. Você já viu alguns deles pela cidade – um na Avenida Paulista, um no Largo do Arouche, um na Avenida São João. Alguns, mais modestos, andam pelos bairros da periferia. E falam, falam, falam sem parar. Falam para os carros, para os passarinhos, para as árvores, para os postes. Não falam conosco. Já tentaram, em outro tempo, e enlouqueceram de tanto tentar.

        Ontem, vi um desses desvairados. Entrei numa dessas agências bancárias em que não há funcionários, só máquinas, e o vi conversando com uma delas.

        A máquina pedia: – Digite sua senha.

        Ele digitava e dizia: – OK.

        A máquina sugeria: – Digite o valor dos cheques depositados.

        Ele digitava e agradecia: – Obrigado.

        Aí ele errava, e a máquina repetia: – Digite o valor dos cheques depositados.

        Ele digitava de novo e se eximia: – Desculpe, hoje eu estou atrapalhado.

        A conversa continuou, enquanto eu, na minha máquina, muda, sacava um dinheirinho. Enfiei as notas no bolso, saí e fiquei um minuto ou dois lendo as manchetes numa banca. Quando me dispus a retomar meu caminho, quem foi que se aproximou de mim? O homem, aquele. Olhou-me com simpatia e me perguntou: – Tudo bem?

        Entrei em pânico. Ele, então, levantou a mão e me cumprimentou: – Até logo e boa sorte.

        Enquanto eu, estupefato, não sabia se respondia ou não, ele atravessou a rua e se foi. Era um louco, só podia ser. Falava e, além de falar, sorria.

O Estado de São Paulo, 25 nov. 1997.

    Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 95-7.

Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fvariosexemplos.blogspot.com%2F2019%2F08%2Fcomo-separar-em-silabas-palavra-exemplo.html&psig=AOvVaw2WA-bDHIXJPAFZHN_SC7R_&ust=1607125808068000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCIjCibeAs-0CFQAAAAAdAAAAABAD


Entendendo a Crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acossado: pressionado.

·        Convivência: ação ou efeito de conviver, trato diário.

·        Recorremos: lançamos mão de, usamos.

·        Engajada: comprometida com a vida política.

·        Grunhidos: resmungos.

·        Periferia: subúrbio, região afastada do centro da cidade.

·        Rancor: raiva.

·        Desvairados: loucos, dementes.

·        Desamor: ausência de amor.

·        Digite: use o teclado de uma máquina.

·        Inamistoso: agressivo.

·        Eximia-se: desculpava-se.

·        Minguados: poucos.

·        Estupefato: espanto.

02 – Onde se ambienta a ação do texto?

      A ação do texto ocorre em São Paulo.

03 – O problema apresentado pelo texto pode acontecer somente naquele local? Como é isso na sua cidade?

      Não, esse problema pode acontecer em qualquer grande cidade do mundo. Resposta pessoal do aluno.

04 – Segundo o texto:

a)   Quais as razões para o silêncio das pessoas nas ruas?

O cansaço, os problemas, as dificuldades econômicas, as decepções, o medo.

b)   Quais são os temas discutidos em reuniões? Faça um comentário a respeito.

Os temas são o futebol, a vida íntima de astros de cinema e televisão e dietas ou regimes novos.

c)   O que acontece com aquelas pessoas que querem conversar sobre assuntos mais sérios?

Algumas dessas pessoas começam a falar sozinhas, consigo mesmas.

05 – Na sua opinião, por que o texto diz que “somos robôs programados para o essencial”?

      Resposta pessoal do aluno.

06 – Qual é o problema humano que o texto discute? Faça um comentário a respeito.

      O texto discute a dificuldade de comunicação entre as pessoas imposta pela correria do dia-a-dia.

07 – Como você entendeu o episódio narrado no final do texto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: é um recurso do autor para, por meio de uma situação externa, chamar a atenção sobre o problema que comenta na crônica: a incomunicabilidade, o isolamento em que vivemos.

08 – A crônica discute um problema enfrentado por que faixa etária?

      A crônica discute o problema da solidão enfrentado pelos adultos.

09 – Você concorda com a análise do cronista? Faça um comentário a respeito.

      Resposta pessoal do aluno.

Um comentário: