terça-feira, 8 de dezembro de 2020

TEXTO: MEU PAI - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Texto: MEU PAI

          Graciliano Ramos 

        Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento.  Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares:  as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humilde, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia.  Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de amaro havia numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas comparadas à chita de Sinhá Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu pai vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca estava satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente, essa birra tornava-se razoável e vantajosa: curvara espinhaços, retesara músculos, cavara na piçarra e na argila o açude que se cobria de patos, mergulhões e flores de baronesa. Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal, num gibão roto sobre a camisa curta...

        Sentado junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai. Não entendi o sussurro lastimoso, mas adivinhei que ia surgir transformação. A vila, uma loja e dinheiro entraram-me nos ouvidos. O desalento e a tristeza abalaram-me. Explicavam a sisudez, o desgosto habitual, as rugas, as explosões de pragas e de injúrias. Mas a explicação me apareceu anos depois. Na rua examinei o ente sólido, áspero com os trabalhadores, garboso nas cavalhadas. Vi-o arrogante, submisso, agitado, apreensivo – um despotismo que às vezes se encolhia, impotente e lacrimoso. A impotência e as lágrimas não nos comoviam. Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento, economizava com avareza. Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e batidos.

    Graciliano Ramos – Infância. São Paulo, Record, 1992. P. 25-27.

     Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 86-8.

Entendendo o texto: 

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acocoravam-se: agachavam-se, ficavam de cócoras.

·        Alpendre: área coberta diante da casa.

·        Gibão: casaco de couro.

·        Sura: surrada.

·        Estazavam: cansavam, fatigavam.

·        Desconchavos: disparates, despropósitos.

·        Retesara: enrijecera, tornara rijo, duro.

·        Piçarra: rocha argilosa, cascalho.

·        Inertes: paradas, sem força.

·        Agreste: rústico, rude, áspero.

·        Morrinha: sarna epidêmica do gado.

·        Sisudez: seriedade, gravidade.

·        Ente: ser.

·        Garboso: elegante.

·        Despotismo: autoritarismo, tirania.

·        Epizootia: doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

·        Aperreava: aborrecia, incomodava.

·        Calotes: logros, fraudes, danos.

·        Avareza: apego excessivo ao dinheiro, mesquinhez.

02 – Copie a alternativa correta. O narrador é:

a)   Um menino assustado pela agressividade do pai.

b)   Um adulto lembrando das impressões causadas por seu pai em sua infância.

c)   Um adulto falando das relações com seu pai.

03 – Que observações levam o narrador, ainda criança, a deduzir que seu pai era um homem poderoso?

      Ele percebia a diferença na roupa que vestiam, nas atitudes submissas das pessoas que viviam à volta do pai.

04 – O narrador está contando fatos acontecidos em que época de sua vida?

      Na primeira infância.

05 – Quais as características psicológicas do pai presentes no texto?

      O pai aparece como autoritário, violento, déspota, parcimonioso, pontual em seus pagamentos.

06 – Copie a alternativa correta. No texto, o pai:

a)   Tem sempre o mesmo comportamento.

b)   Apresenta uma mudança de comportamento.

c)   Apresenta constantes alterações em seu comportamento.

07 – Por que o narrador se surpreende com a mudança de comportamento do pai?

      Porque ele se acostumara ao seu modo grave de ser, sempre gritando com os empregados.

08 – Por que o pai repreendia e castigava os filhos?

      Para descarregar as frustações dele.

09 – Ao justificar, depois de adulto, o violento comportamento paterno, a que ele atribui esta atitude?

      A tentativa de manter uma posição social em meio ao verão, à epizootia, à política local e ao fisco.

10 – O narrador, quando criança, estranha o fato de haver forças maiores que as de seu pai. Que forças são essas?

      As forças da natureza (seca, doenças nos animais) e as forças políticas (chefe político local, justiça, fisco).

11 – As fortes pressões sofridas pelo pai para manter-se nos negócios faziam-no adquirir uma dimensão mais humana, tornavam-no “normal”. Pode-se dizer que, nessas ocasiões, estabelecia-se alguma afetividade entre o pai e os filhos? Retire do texto uma frase que justifique sua resposta.

      Não. Eles apenas o temiam, não o amavam: “A impotência e as lágrimas não nos comoviam”.

 

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