Texto: MEU PAI
Graciliano Ramos
Espanto, e enorme, senti ao enxergar
meu pai abatido na sala, o gesto lento. Habituara-me a vê-lo grave,
silencioso, acumulando energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares
perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares: as pessoas
atingidas baixavam a cabeça, humilde, ou corriam a executar ordens. Eu era
ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia. Notava
diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam
no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de amaro havia
numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas
comparadas à chita de Sinhá Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de algodão
cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu
pai vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca estava
satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente, essa birra
tornava-se razoável e vantajosa: curvara espinhaços, retesara músculos, cavara
na piçarra e na argila o açude que se cobria de patos, mergulhões e flores de
baronesa. Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me
ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o
fraco e normal, num gibão roto sobre a camisa curta...
Sentado junto às armas de fogo e aos
instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem
agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam,
o gado se finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o
carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai. Não entendi o
sussurro lastimoso, mas adivinhei que ia surgir transformação. A vila, uma loja
e dinheiro entraram-me nos ouvidos. O desalento e a tristeza abalaram-me.
Explicavam a sisudez, o desgosto habitual, as rugas, as explosões de pragas e
de injúrias. Mas a explicação me apareceu anos depois. Na rua examinei o ente
sólido, áspero com os trabalhadores, garboso nas cavalhadas. Vi-o arrogante,
submisso, agitado, apreensivo – um despotismo que às vezes se encolhia,
impotente e lacrimoso. A impotência e as lágrimas não nos comoviam. Hoje acho
naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de
ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em
sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão,
arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao
fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e
afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento,
economizava com avareza. Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos
repreendidos e batidos.
Graciliano Ramos – Infância.
São Paulo, Record, 1992. P. 25-27.
Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 86-8.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Acocoravam-se:
agachavam-se, ficavam de cócoras.
·
Alpendre: área coberta diante da casa.
·
Gibão: casaco de couro.
·
Sura: surrada.
·
Estazavam: cansavam, fatigavam.
·
Desconchavos: disparates, despropósitos.
·
Retesara: enrijecera, tornara rijo, duro.
·
Piçarra: rocha argilosa, cascalho.
·
Inertes: paradas, sem força.
·
Agreste: rústico, rude, áspero.
·
Morrinha: sarna epidêmica do gado.
·
Sisudez: seriedade, gravidade.
·
Ente: ser.
·
Garboso: elegante.
·
Despotismo: autoritarismo, tirania.
·
Epizootia: doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais ao
mesmo tempo e no mesmo lugar.
·
Aperreava:
aborrecia, incomodava.
·
Calotes: logros, fraudes, danos.
·
Avareza: apego excessivo ao dinheiro, mesquinhez.
02 – Copie a alternativa
correta. O narrador é:
a)
Um menino assustado pela agressividade do
pai.
b)
Um adulto lembrando das impressões
causadas por seu pai em sua infância.
c)
Um adulto falando das relações com seu pai.
03 – Que observações levam o
narrador, ainda criança, a deduzir que seu pai era um homem poderoso?
Ele percebia a
diferença na roupa que vestiam, nas atitudes submissas das pessoas que viviam à
volta do pai.
04 – O narrador está
contando fatos acontecidos em que época de sua vida?
Na primeira
infância.
05 – Quais as
características psicológicas do pai presentes no texto?
O pai aparece
como autoritário, violento, déspota, parcimonioso, pontual em seus pagamentos.
06 – Copie a alternativa
correta. No texto, o pai:
a)
Tem sempre o mesmo comportamento.
b)
Apresenta uma mudança de
comportamento.
c)
Apresenta constantes alterações em seu
comportamento.
07 – Por que o narrador se
surpreende com a mudança de comportamento do pai?
Porque ele se
acostumara ao seu modo grave de ser, sempre gritando com os empregados.
08 – Por que o pai
repreendia e castigava os filhos?
Para descarregar as frustações dele.
09 – Ao justificar, depois
de adulto, o violento comportamento paterno, a que ele atribui esta atitude?
A tentativa de
manter uma posição social em meio ao verão, à epizootia, à política local e ao
fisco.
10 – O narrador, quando
criança, estranha o fato de haver forças maiores que as de seu pai. Que forças
são essas?
As forças da
natureza (seca, doenças nos animais) e as forças políticas (chefe político
local, justiça, fisco).
11 – As fortes pressões
sofridas pelo pai para manter-se nos negócios faziam-no adquirir uma dimensão
mais humana, tornavam-no “normal”. Pode-se dizer que, nessas ocasiões,
estabelecia-se alguma afetividade entre o pai e os filhos? Retire do texto uma
frase que justifique sua resposta.
Não. Eles apenas
o temiam, não o amavam: “A impotência e as lágrimas não nos comoviam”.
Mano essa atividade|gabarito me ajudou MUITO mesmo
ResponderExcluir