Conto: Ao deus diálogo
Marina Colasanti
Para garantir a segurança de suas
famílias, os antigos romanos mantinham em casa um altar aos deuses do lar.
Hoje, sem altar mas com a mesma devoção, cultuamos o deus diálogo.
Dele esperamos que resolva todos os
problemas da relação, escancarando as portas do entendimento. Que funcione como
uma espécie de garantia do amor, um seguro contra as separações. Dialogue!
Exortam os terapeutas e os comportamentólogos. Dialogue! Incitam centenas de
livros, milhares de revistas. E nós, que somos uma geração cheia de vontade de
acertar, empunhamos os sagrados estandartes do diálogo e desandamos a falar.
Mas será que o sabemos? Desde
pequeninos uma frase marca nossa relação com essa difícil arte: “Cala a boca,
menino!” Criança não tem vez para falar. Junto com o desmame, aprende que não
deve interromper os adultos, não deve se meter em conversa de gente grande a
não ser quando solicitada. Em meus tempos de colégio interno – que já vão
bastante longe, mas nem por isso fazem parte da antiguidade – não podíamos
falar nem nos dormitórios, nem nos corredores, nem no refeitório, nem na sala
de aula, e muito menos na capela. Ou seja, não podíamos falar, a não ser nos
recreios. Transgressões a essa regra implicavam perda das saídas quinzenais.
Assim, as boas freiras se esforçavam para fazer de nós futuras dialogantes.
Em
casa continua o aprendizado. Qualquer filho descobre desde cedo que os pais
utilizam dois diálogos diferentes: um na frente das crianças, e outro depois
que as crianças estão dormindo, ou quando acham que elas não estão ouvindo. A
partir daí, os filhos, aprendizes obedientes, passam a utilizar com os pais o
mesmo sistema. (...)
Esse aprendizado pode ganhar reforço
behaviorista quando, dizendo para os pais ou adultos em geral aquilo que a
prudência lhe aconselharia calar, a criança é devidamente castigada. Dessa
forma, castigo e verdade estabelecem aos poucos, para ela, um sólido vínculo.
Crescidos, temos fartas oportunidades
de ver aplicado em larga escala aquilo que aprendemos. Os políticos e
governantes falam uma coisa e pensam outra, os filósofos e os intelectuais
apregoam uma liberdade que não praticam em casa, a boa senhora patrona de uma
instituição de caridade maltrata a empregada. E todos parecem praticar um
discurso para uso externo e outro para consumo interno.
Ou seja, somos oficialmente instigados
à abertura e à sinceridade, ao famoso diálogo. Mas, o que nos é realmente
ensinado, como meio de defesa e de vitórias, é a duplicidade do discurso.
E por falar em amor. São
Paulo, Círculo do Livro, s/d. p. 115.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 97-8.
Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.acessa.com%2Fnegocios%2Farquivo%2Fnoticias%2F2017%2F05%2F08-dialogo-trabalho%2F&psig=AOvVaw1qALaoL_Dk3yQUu5G6JBNf&ust=1607562514476000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjS-Zbbv-0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Exortam: encorajam.
·
Behaviorista: relativo à teoria psicanalítica que estuda o poder dos
estímulos no aprendizado.
·
Comportamentólogos: estudiosos do comportamento.
·
Incitam:
animam, encorajam.
·
Apregoam: propagandeiam.
·
Transgressões: desobediências.
·
Instigados: aconselhados, encorajados.
02 – De que fala o texto?
O texto fala de
causas que dificultam o diálogo entre as pessoas.
03 – Qual a ideia
desenvolvida pela autora deste texto?
Embora
conscientes da importância do diálogo, temos grande dificuldade para praticar
“essa difícil arte”, pois, à nossa volta, valoriza-se a sinceridade do diálogo,
mas o que realmente se ensina é a duplicidade do discurso.
04 – Segundo o texto, quais
as causas da dificuldade de se tornar um “verdadeiro dialogante”?
A educação que recebemos em casa e na
escola, os exemplos dados pelos pais, políticos, filósofos e intelectuais que
apregoam uma coisa e praticam outra: todos parecem ter um discurso para uso
externo e outro para consumo interno.
05 – Há um momento em que a
autora utiliza uma profunda e amarga ironia. Localize o trecho onde isso
acontece.
“Assim, as boas freiras se esforçavam para
fazer de nós futuras dialogantes.”
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