Conto: O mistério do professor de Química
Ignácio de Loyola Brandão
Certo dia, Machadinho aproximou-se de
minha carteira.
-- O menino entrou para o científico
por quê? Olhei suas notas de Matemática e Física. Você é uma nulidade. Pretende
ser engenheiro, arquiteto, médico?
-- Nada disso. Nem sei o que pretendo
ser.
-- Mas vejo que o menino escreve em jornal.
Escreve direito, faz umas críticas de cinema.
-- Faço. Talvez eu queira ser diretor
de cinema.
-- E por que não se matriculou no
clássico?
-- Como é mais fácil, não tinha mais
vaga e eu não podia parar de estudar.
-- Não pensa escrever livros? Leva
jeito.
-- Levo? Pode ser, pode ser, gosto de
inventar.
-- Então, vamos fazer um acordo? De
hoje em diante, o menino senta na última carteira. Fica lendo, escrevendo,
fazendo o que quiser. Só não bagunce. No dia das provas, resolvo o problema
para você e fica garantida a nota 4, suficiente para passar. Agora, tenha notas
altas em Português, Línguas, Histórias, para ajudar a média geral.
E assim foi. Não me preocupei mais com
a Química. Ficava lendo e, muitas vezes, ele dava uma prova e ia para o fundo,
ficávamos a conversar generalidades, ele me ensinava sobre o teatro de Gil
Vicente, comentava as manias de Camões, contava sobre Fernando Pessoa, de quem
ninguém ainda falava, relatava um conto pouco lido de Machado de Assis,
despertava-me para as narrativas de Érico Veríssimo. Era uma conversa rica,
estimulante, farta, copiosa. Ter aulas de Português com Machadinho devia ser
divertido. Quase no final, ele resolvia o meu problema de Química, para
desespero da turma que ia fazer Engenharia. Outras vezes chegava à carteira com
a minha crítica de cinema, sentava-se ao lado e cascava o pau na concordância,
nos regimes dos verbos, no mau uso de pronomes. “A quem interessa falar dos
planos e grandes planos?”, indagava. “O grande público não tem a mínima ideia
do que seja um close-up. Sabe o que interessa ao espectador de cinema? A
emoção, meu filho! Cinema sem emoção é uma chatice. Literatura sem emoção é
morta. Vida sem emoção não vale a pene ser vivida.”
Será que era emoção o que ele
encontrava atrás da porta do laboratório? Aquele professor de fala vibrante,
voz metálica, riso irônico que metia medo e frases desconcertantes era uma
figura original, desafiadora, numa cidade interiorana onde tudo era cinza,
fechado, estranho. Aquele era um homem que tinha lido muito, ia ao cinema,
conhecia artistas, diretores e roteiristas, comentava teatro e poesia, sabia
Química e Português. Um sujeito especial. E guardava um segredo na vida. Mas
qual? Como penetrar, se ele não fornecia brechas?
Exame oral no último ano. Salão nobre.
As paredes rodeadas por quadros-negros. Muitas classes faziam exame ao mesmo
tempo. Havia excitação no ar, uns assistindo ao exame dos outros. O ritual era
invariável. Sorteava-se o ponto retirando-o de uma garrafinha de bambu. A cada
ponto correspondia uma matéria. Apanhei a garrafa com tranquilidade. Não sabia
nada, para que me angustiar? Machadinho olhou o meu número, deu um sorriso
sarcástico, despachou-me para um quadro-negro bem em frente a uma classe só de
mulheres. Ali estavam as meninas mais bonitas de todas as turmas. Ele me ditou
o problema. Tinha que resolver uma equação complicadérrima. Fiquei perplexo por
instantes. E a ajuda? Machadinho se afastou, dizendo: “Quando o menino
resolver, vá para a mesa terminar o exame”. Olhei para trás. Todas as meninas
me olhavam. Pertencendo a uma classe ainda não tão adiantada, observavam
abismadas o que eu iria fazer com aquela fórmula, para mim mais impenetrável do
que para elas. Simplesmente contemplava os números e as letras, desviava o
olhar para as meninas. Podia acontecer de tudo, menos fazer um papelão, sofrer
um vexame. Resolveria a equação. Tinha decidido que resolveria. Comecei os meus
cálculos. Fui acrescentando números, letras, raízes quadradas, X sobre Y,
descobri até um pi, e fui enchendo o quadro-negro com uma barafunda das mais
incompreensíveis. Cada vez que olhava para as meninas, percebia o olhar de
espanto. Somente um gênio poderia saber tais coisas. Ela me olhavam sôfregas.
Em todos os meus anos de científico, aquele era o da minha consagração. Seria
visto, dali para a frente, como um gênio. Súbito, dei por terminada a operação,
atirei o giz com desprezo e altivez para a caixinha e, triunfante, passei pela
frente das alunas, em direção à mesa.
-- O menino merece 10.
Fiquei abismado. Teria acertado?
-- 10. Fiz direito. Não fiz? O senhor
não confiava em mim?
-- Aquilo que você fez é a maior
vigarice do mundo.
-- Vigarice? E vai me dar 10?
-- Pelo talento. O menino devia ser
ator de cinema. Não existe ali um único dado que não seja de uma insanidade a
toda prova. Mas percebi, ah se percebi. Não podia fazer feio diante de moças
tão bonitas. Elas adoraram, pode ter certeza. Hoje você foi o herói delas. Este
dia vai ficar na memória de cada uma. Mesmo que você não seja nada, um dia,
será lembrado. Por elas e por mim. Vou dar uma boa nota pela criatividade,
audácia, inventividade. E pelos recursos rápidos. Só te aconselho a não fazer
pela vida afora o que fez hoje.
Acho que nunca mais repeti a façanha
falsificadora do quadro-negro e da fórmula química. Só sei que, outro dia,
voltei à cidade e encontrei Machadinho. Deve estar com 90 anos. Ou mais. Ainda
tem o mesmo ar que me deixa intrigado.
-- Tenho acompanhado o menino. Vai bem.
Escreve livros. Li alguns. Tem emoção. Isso você não esqueceu – a emoção. Como
eu não esqueci aquele exame no salão nobre.
Conversamos por algumas horas, diante
de cálices de vinho do Porto. Então me levantei, queria me despedir e queria
perguntar. Fiquei indeciso.
-- Tem uma coisa que eu queria saber.
-- Pergunte.
-- Não sei se devo. Uma curiosidade que
me acompanhou pela vida.
-- Vá lá! Diga. Pergunte o que quiser!
-- Quero saber, professor, passados
quarenta anos, o que o senhor fazia com a loira assistente, os dois encerrados
no laboratório.
E ele, sorrindo, como se de repente
todo aquele tempo tivesse retornado e nos envolvido.
-- Nada, nada mesmo. Apenas ficava
provocando vocês. Eu e ela.
Tremendo gozador, sabia que éramos uns
provincianos mexeriqueiros e curiosos. Ficavam ali os dois a bater papo, ler
jornais, e fumar e a conversar, sabendo que na sala havia expectativas e
pensamentos os mais desencontrados, escabrosos, malucos. Os dois sabiam que
eram o assunto privado de cada um. E provocavam. Levei quarenta anos para
descobrir que não havia mistério no laboratório.
Meu professor inesquecível.
São Paulo, Editora Gente, 1997. Org. Fanny Abramovich.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 149-153.
Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.pintarcolorir.com.br%2Fdesenhos-para-colorir-dia-do-professor%2F&psig=AOvVaw2TXXixqqpvSnOH91iGNayZ&ust=1607733388737000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMic9KnZxO0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.
·
Roleta-russa:
jogo com revólver que contém apenas uma bala.
·
Apreço: estima, consideração.
·
Urdido: tramado, tecido.
·
Onipresente: presente em todos os lugares.
·
Esquartejador: aquele que corta em pedaços.
·
Obsceno: imoral.
·
Evento: acontecimento.
·
Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.
·
Hipótese: ideia ou explicação não provada.
02 – Como se sente o
narrador em relação ao Brasil?
Ele ainda está em
processo de adaptação.
03 – Qual o fato que deu
origem à crônica?
A demissão de um ministro dos transportes
flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.
04 – Por que o narrador
escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?
Porque o tema
demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.
05 – Como dirigem, segundo o
texto, os motoristas brasileiros?
Dirigem contra todos os outros
motoristas.
06 – Qual a consequência
principal do estilo brasileiro de dirigir?
O elevado número
de acidentes.
07 – Como você interpreta
esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?
Resposta pessoal do aluno.
08 – Como se sente o
narrador em relação ao trânsito brasileiro?
Sente-se mal, critica a
irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.
09 – O texto contém várias críticas
aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
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