quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

CONTO: O MISTÉRIO DO PROFESSOR DE QUÍMICA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto: O mistério do professor de Química

               Ignácio de Loyola Brandão

    Certo dia, Machadinho aproximou-se de minha carteira.

        -- O menino entrou para o científico por quê? Olhei suas notas de Matemática e Física. Você é uma nulidade. Pretende ser engenheiro, arquiteto, médico?

        -- Nada disso. Nem sei o que pretendo ser.

        -- Mas vejo que o menino escreve em jornal. Escreve direito, faz umas críticas de cinema.

        -- Faço. Talvez eu queira ser diretor de cinema.

        -- E por que não se matriculou no clássico?

        -- Como é mais fácil, não tinha mais vaga e eu não podia parar de estudar.

        -- Não pensa escrever livros? Leva jeito.

        -- Levo? Pode ser, pode ser, gosto de inventar.

        -- Então, vamos fazer um acordo? De hoje em diante, o menino senta na última carteira. Fica lendo, escrevendo, fazendo o que quiser. Só não bagunce. No dia das provas, resolvo o problema para você e fica garantida a nota 4, suficiente para passar. Agora, tenha notas altas em Português, Línguas, Histórias, para ajudar a média geral.

        E assim foi. Não me preocupei mais com a Química. Ficava lendo e, muitas vezes, ele dava uma prova e ia para o fundo, ficávamos a conversar generalidades, ele me ensinava sobre o teatro de Gil Vicente, comentava as manias de Camões, contava sobre Fernando Pessoa, de quem ninguém ainda falava, relatava um conto pouco lido de Machado de Assis, despertava-me para as narrativas de Érico Veríssimo. Era uma conversa rica, estimulante, farta, copiosa. Ter aulas de Português com Machadinho devia ser divertido. Quase no final, ele resolvia o meu problema de Química, para desespero da turma que ia fazer Engenharia. Outras vezes chegava à carteira com a minha crítica de cinema, sentava-se ao lado e cascava o pau na concordância, nos regimes dos verbos, no mau uso de pronomes. “A quem interessa falar dos planos e grandes planos?”, indagava. “O grande público não tem a mínima ideia do que seja um close-up. Sabe o que interessa ao espectador de cinema? A emoção, meu filho! Cinema sem emoção é uma chatice. Literatura sem emoção é morta. Vida sem emoção não vale a pene ser vivida.”

        Será que era emoção o que ele encontrava atrás da porta do laboratório? Aquele professor de fala vibrante, voz metálica, riso irônico que metia medo e frases desconcertantes era uma figura original, desafiadora, numa cidade interiorana onde tudo era cinza, fechado, estranho. Aquele era um homem que tinha lido muito, ia ao cinema, conhecia artistas, diretores e roteiristas, comentava teatro e poesia, sabia Química e Português. Um sujeito especial. E guardava um segredo na vida. Mas qual? Como penetrar, se ele não fornecia brechas?

        Exame oral no último ano. Salão nobre. As paredes rodeadas por quadros-negros. Muitas classes faziam exame ao mesmo tempo. Havia excitação no ar, uns assistindo ao exame dos outros. O ritual era invariável. Sorteava-se o ponto retirando-o de uma garrafinha de bambu. A cada ponto correspondia uma matéria. Apanhei a garrafa com tranquilidade. Não sabia nada, para que me angustiar? Machadinho olhou o meu número, deu um sorriso sarcástico, despachou-me para um quadro-negro bem em frente a uma classe só de mulheres. Ali estavam as meninas mais bonitas de todas as turmas. Ele me ditou o problema. Tinha que resolver uma equação complicadérrima. Fiquei perplexo por instantes. E a ajuda? Machadinho se afastou, dizendo: “Quando o menino resolver, vá para a mesa terminar o exame”. Olhei para trás. Todas as meninas me olhavam. Pertencendo a uma classe ainda não tão adiantada, observavam abismadas o que eu iria fazer com aquela fórmula, para mim mais impenetrável do que para elas. Simplesmente contemplava os números e as letras, desviava o olhar para as meninas. Podia acontecer de tudo, menos fazer um papelão, sofrer um vexame. Resolveria a equação. Tinha decidido que resolveria. Comecei os meus cálculos. Fui acrescentando números, letras, raízes quadradas, X sobre Y, descobri até um pi, e fui enchendo o quadro-negro com uma barafunda das mais incompreensíveis. Cada vez que olhava para as meninas, percebia o olhar de espanto. Somente um gênio poderia saber tais coisas. Ela me olhavam sôfregas. Em todos os meus anos de científico, aquele era o da minha consagração. Seria visto, dali para a frente, como um gênio. Súbito, dei por terminada a operação, atirei o giz com desprezo e altivez para a caixinha e, triunfante, passei pela frente das alunas, em direção à mesa.

        -- O menino merece 10.

        Fiquei abismado. Teria acertado?

        -- 10. Fiz direito. Não fiz? O senhor não confiava em mim?

        -- Aquilo que você fez é a maior vigarice do mundo.

        -- Vigarice? E vai me dar 10?

        -- Pelo talento. O menino devia ser ator de cinema. Não existe ali um único dado que não seja de uma insanidade a toda prova. Mas percebi, ah se percebi. Não podia fazer feio diante de moças tão bonitas. Elas adoraram, pode ter certeza. Hoje você foi o herói delas. Este dia vai ficar na memória de cada uma. Mesmo que você não seja nada, um dia, será lembrado. Por elas e por mim. Vou dar uma boa nota pela criatividade, audácia, inventividade. E pelos recursos rápidos. Só te aconselho a não fazer pela vida afora o que fez hoje.

        Acho que nunca mais repeti a façanha falsificadora do quadro-negro e da fórmula química. Só sei que, outro dia, voltei à cidade e encontrei Machadinho. Deve estar com 90 anos. Ou mais. Ainda tem o mesmo ar que me deixa intrigado.

        -- Tenho acompanhado o menino. Vai bem. Escreve livros. Li alguns. Tem emoção. Isso você não esqueceu – a emoção. Como eu não esqueci aquele exame no salão nobre.

        Conversamos por algumas horas, diante de cálices de vinho do Porto. Então me levantei, queria me despedir e queria perguntar. Fiquei indeciso.

        -- Tem uma coisa que eu queria saber.

        -- Pergunte.

        -- Não sei se devo. Uma curiosidade que me acompanhou pela vida.

        -- Vá lá! Diga. Pergunte o que quiser!

        -- Quero saber, professor, passados quarenta anos, o que o senhor fazia com a loira assistente, os dois encerrados no laboratório.

        E ele, sorrindo, como se de repente todo aquele tempo tivesse retornado e nos envolvido.

        -- Nada, nada mesmo. Apenas ficava provocando vocês. Eu e ela.

        Tremendo gozador, sabia que éramos uns provincianos mexeriqueiros e curiosos. Ficavam ali os dois a bater papo, ler jornais, e fumar e a conversar, sabendo que na sala havia expectativas e pensamentos os mais desencontrados, escabrosos, malucos. Os dois sabiam que eram o assunto privado de cada um. E provocavam. Levei quarenta anos para descobrir que não havia mistério no laboratório.

  Meu professor inesquecível. São Paulo, Editora Gente, 1997. Org. Fanny Abramovich.

      Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 149-153.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.pintarcolorir.com.br%2Fdesenhos-para-colorir-dia-do-professor%2F&psig=AOvVaw2TXXixqqpvSnOH91iGNayZ&ust=1607733388737000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMic9KnZxO0CFQAAAAAdAAAAABAD


Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Sucinto: que usa poucas palavras, conciso.

·        Roleta-russa: jogo com revólver que contém apenas uma bala.

·        Apreço: estima, consideração.

·        Urdido: tramado, tecido.

·        Onipresente: presente em todos os lugares.

·        Esquartejador: aquele que corta em pedaços.

·        Obsceno: imoral.

·        Evento: acontecimento.

·        Monopolizadas: possuídas, exploradas com exclusividade.

·        Hipótese: ideia ou explicação não provada.

02 – Como se sente o narrador em relação ao Brasil?

      Ele ainda está em processo de adaptação.

03 – Qual o fato que deu origem à crônica?

      A demissão de um ministro dos transportes flagrado ao fugir covardemente da responsabilidade por um atropelamento.

04 – Por que o narrador escolhe o tema “trânsito nas grandes cidades brasileiras”?

      Porque o tema demonstra nossa falta de civilidade e pouco apreço pela vida.

05 – Como dirigem, segundo o texto, os motoristas brasileiros?

      Dirigem contra todos os outros motoristas.

06 – Qual a consequência principal do estilo brasileiro de dirigir?

      O elevado número de acidentes.

07 – Como você interpreta esta afirmação: “Cada cruzamento é uma roleta-russa”?

      Resposta pessoal do aluno.

08 – Como se sente o narrador em relação ao trânsito brasileiro?

      Sente-se mal, critica a irresponsabilidade e a impunidade que vê em toda a parte.

09 – O texto contém várias críticas aos motoristas brasileiros. Você concorda ou discorda delas? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 



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