quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CONTO: BONITOS, RICOS E MALVADOS - CARLOS DIAS - COM GABARITO

 CONTO: Bonitos, ricos e malvados

            Individualistas e arrogantes, adolescentes da chamada elite ignoram valores éticos e desprezam as normas mais elementares de cidadania

          Carlos Dias

        Aquela quinta-feira tinha tudo para terminar tão bem quanto qualquer outra das mais de setecentas quintas-feiras anteriores na vida do motorista do Gol verde. Ao lado da namorada, ele dirigia tranquilo para casa depois de um programa de lazer tipicamente paulista – cineminha seguido de uma parada num restaurante. Faltava pouco para a meia-noite. O trânsito fluía bem na avenida Rebouças, uma das mais movimentadas de São Paulo. A cor da luz do semáforo era verde.

        Aquela quinta-feira também tinha tudo para ser igual a qualquer terça, segunda ou sexta-feira na vida do motorista do Chevette branco. Ao lado de amigos, ele dirigia à vontade em meio ao estrepitar quase imperceptível dos pneus de centenas de carros deslizando simultaneamente pela avenida Henrique Schumman. A profusão de luzes dos automóveis e letreiros inundava de cores os olhos do rapaz. A cor da luz do semáforo era vermelha.

        Aquela quinta-feira, no entanto, terminou antes da hora, de repente, no cruzamento das duas avenidas, no encontro inesperado entre os dois carros. O guinchar dos discos de freio, a fumaça branca dos pneus pretos raspando no asfalto e o cheiro da borracha queimada se misturaram com o ruído do aço se retorcendo, se retraindo. Apesar da violência do choque, ninguém sofreu um único arranhão. Prejuízo material e susto foram as únicas consequências do acidente – nada que não pudesse ser resolvido civilizadamente. Afinal, eles pertenciam ao que se costuma chamar de elite, embora a simplicidade dos automóveis não denunciasse isso.

        O que se viu a seguir, no entanto, foi uma cena de pura barbárie. O motorista do Chevette branco e seus comparsas resolveram pôr fim à pequena pendenga de trânsito com tacos de beisebol. Não importava que eles tivessem passado o sinal vermelho. O fato de o motorista ser menor de idade e, portanto, não ter carteira de habilitação, era também apenas um detalhe. Nada parecia ter importância, a não ser eles mesmos. Enquanto um segurava a namorada, os outros quatro passaram a espancar o motorista do Gol verde. Golpe a golpe. O ruído seco da madeira contra os ossos do rapaz encheu o ar de horror e de gritos de dor. Enquanto um braço erguia um taco no ar para ganhar impulso, outra mão descia para bater com mais força. Não havia trégua. Só pararam quando a sua vítima começou a convulsionar no chão.

        Histórias como essa vêm se repetindo com frequência cada vez maior entre os adolescentes da chamada elite brasileira – esse segmento da sociedade frequentemente identificado como modelo de cidadania e guardião da moral e dos bons costumes, seja lá o que tudo isso signifique para eles. Nem todas essas histórias chegam às páginas dos jornais, como a do índio pataxó queimado vivo em abril passado. Nem todas chegam às barras da Justiça, como a dos trogloditas dos tacos de beisebol. Nem todas são tão violentas ou têm final tão trágico. O que todas têm em comum, no entanto, é o alto grau de sordidez, de desprezo e indiferença às normas mais elementares de civilidade e cidadania.

        Boné de boiola – “Há poucos anos, eu ainda me preocupava com o planeta que íamos deixar para nossos filhos”, diz a dramaturga Maria Adelaide Amaral. “Hoje, me preocupa nas mãos de quem vamos deixar o planeta”. A preocupação não é para menos. Essa linhagem parece só reconhecer como espaço aquele identificado na escritura em nome da família. Emporcalham praias e avenidas, estacionam sobre calçadas e atiram latas de cerveja pela janela do carro como se o mundo fora de seus condomínios fechados fosse uma grande lata de lixo. Evidentemente, não se pode generalizar. Mas também não se pode negar que basta uma minoria barulhenta para conspurcar a maioria silenciosa e civilizada.

        Arrogantes e presunçosos, esses moleques bem-nascidos e malcriados estão crescendo encastelados num mundo de faz-de-conta. No planeta em que eles acham que vivem, o idioma não inclui palavras como por favor ou obrigado, com licença ou sinto muito. Seres humanos são apenas aqueles de pele branca que dirigem carros novos, de preferência importados. Para eles, civilidade é comer com o talher certo em restaurantes de Miami e cidadania é o direito de usar o telefone celular onde bem entender. Seu contato com o mundo real se dá por meio de uma asséptica forma de ficção quase científica: a televisão. “A maioria dos meus amigos não perde o 190 Urgente”, diz um desses garotos.

        As cenas de miséria e violência no país são vistas, no entanto, com o distanciamento de quem assiste a um documentário, por exemplo, sobre a longínqua Quirguízia. Não existe, enfim, vida inteligente fora do condomínio. Ou melhor: não existe vida. E ponto. Presos a estereótipos, julgam outros adolescentes e a si próprios pelas grifes que usam, que têm de ser norte-americanas legítimas, é claro. Calvin Klein, Gap e Guess estão entre as preferidas. Nem o boné escapa. Tem de ser Polo by Ralph Lauren, usado obrigatoriamente com a aba encurvada. “Só boiola usa com a aba reta”, diz o menino. Para essa geração, porém, os símbolos de status não se limitam a grifes. Eles incorporaram as ambições materiais de seus pais e se preocupam cada vez mais com coisas como viagens de compras aos Estados Unidos ou casa na praia.

           Revista Educação. São Paulo, Editora Segmento, out. 1997, n. 19.

        Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 140-2.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Imperceptível: que não se percebe.

·        Sordidez: baixaria.

·        Simultaneamente: ao mesmo tempo.

·        Linhagem: origem, família.

·        Profusão: quantidade.

·        Conspurcar: sujar.

·        Retrair: recuar, fechar.

·        Civilidade: educação.

·        Barbárie: selvageria.

·        Asséptica: limpa.

·        Segmento: parte.

·        Estereótipo: tipo padronizado, que não varia.

02 – Localize o acidente mencionado no início do texto no tempo e no espaço.

      O acidente ocorreu em São Paulo, no cruzamento entre as avenidas Rebouças e Henrique Schaumman, pouco antes da meia-noite de uma quinta-feira.

03 – Identifique e qualifique os dois grupos envolvidos no acidente.

      No Chevette branco, estava um grupo de adolescentes de classe média alta e no Gol verde, um casal também de classe média alta.

04 – Como os adolescentes “resolveram” o problema da batida? O que eles revelaram nessa solução?

      Eles “resolveram” o problema espancando o motorista do Gol. Revelaram agressividade, nenhuma educação, desprezo e indiferença às normas mais elementares de civilidade e cidadania.

05 – Uma das partes envolvidas tinha razão no acidente? Por quê?

      O motorista do Gol estava certo. O motorista do Chevette era menor de idade, não possuía habilitação e passou o sinal vermelho.

06 – Como você entende: “O que todas têm em comum, no entanto, é o alto grau de sordidez, de desprezo e indiferença às normas mais elementares de civilidade e cidadania.”?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – A verdadeira personagem deste texto é toda uma fatia de uma geração. Como os membros desse segmento veem:

a)   A ecologia?

Algo sem importância alguma.

b)   A boa educação?

Desconsideram.

c)   A realidade?

Algo distante, conhecido apenas por meio da televisão.

d)   A cortesia?

Nenhuma importância.

e)   O respeito humano?

Nenhuma preocupação.

08 – Por meio de que critérios esses adolescentes julgam seus semelhantes?

      Eles o fazem pelas roupas de grife que usam.

09 – Quais são os valores desses adolescentes?

      São os valores materiais herdados dos pais.

10 – O texto é dissertativo, mas apresenta também uma parte narrativa. Identifique onde começa e onde termina o trecho narrativo.

      Vai do início até “... convulsionar no chão”.

11 – Com que objetivo o autor teria escrito o texto que analisamos?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A necessidade de denunciar um tipo de comportamento, cada vez mais frequente, que se caracteriza pelo alto grau de sordidez, desprezo e falta de respeito ao ser humano.

 

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