CONTO: Bonitos, ricos e malvados
Individualistas e arrogantes, adolescentes da chamada elite ignoram valores éticos e desprezam as normas mais elementares de cidadania
Carlos Dias
Aquela quinta-feira tinha tudo para
terminar tão bem quanto qualquer outra das mais de setecentas quintas-feiras
anteriores na vida do motorista do Gol verde. Ao lado da namorada, ele dirigia
tranquilo para casa depois de um programa de lazer tipicamente paulista –
cineminha seguido de uma parada num restaurante. Faltava pouco para a
meia-noite. O trânsito fluía bem na avenida Rebouças, uma das mais movimentadas
de São Paulo. A cor da luz do semáforo era verde.
Aquela quinta-feira também tinha tudo
para ser igual a qualquer terça, segunda ou sexta-feira na vida do motorista do
Chevette branco. Ao lado de amigos, ele dirigia à vontade em meio ao estrepitar
quase imperceptível dos pneus de centenas de carros deslizando simultaneamente
pela avenida Henrique Schumman. A profusão de luzes dos automóveis e letreiros
inundava de cores os olhos do rapaz. A cor da luz do semáforo era vermelha.
Aquela quinta-feira, no entanto,
terminou antes da hora, de repente, no cruzamento das duas avenidas, no
encontro inesperado entre os dois carros. O guinchar dos discos de freio, a
fumaça branca dos pneus pretos raspando no asfalto e o cheiro da borracha
queimada se misturaram com o ruído do aço se retorcendo, se retraindo. Apesar
da violência do choque, ninguém sofreu um único arranhão. Prejuízo material e
susto foram as únicas consequências do acidente – nada que não pudesse ser
resolvido civilizadamente. Afinal, eles pertenciam ao que se costuma chamar de
elite, embora a simplicidade dos automóveis não denunciasse isso.
O que se viu a seguir, no entanto, foi
uma cena de pura barbárie. O motorista do Chevette branco e seus comparsas
resolveram pôr fim à pequena pendenga de trânsito com tacos de beisebol. Não
importava que eles tivessem passado o sinal vermelho. O fato de o motorista ser
menor de idade e, portanto, não ter carteira de habilitação, era também apenas
um detalhe. Nada parecia ter importância, a não ser eles mesmos. Enquanto um
segurava a namorada, os outros quatro passaram a espancar o motorista do Gol
verde. Golpe a golpe. O ruído seco da madeira contra os ossos do rapaz encheu o
ar de horror e de gritos de dor. Enquanto um braço erguia um taco no ar para
ganhar impulso, outra mão descia para bater com mais força. Não havia trégua.
Só pararam quando a sua vítima começou a convulsionar no chão.
Histórias como essa vêm se repetindo
com frequência cada vez maior entre os adolescentes da chamada elite brasileira
– esse segmento da sociedade frequentemente identificado como modelo de
cidadania e guardião da moral e dos bons costumes, seja lá o que tudo isso
signifique para eles. Nem todas essas histórias chegam às páginas dos jornais,
como a do índio pataxó queimado vivo em abril passado. Nem todas chegam às
barras da Justiça, como a dos trogloditas dos tacos de beisebol. Nem todas são
tão violentas ou têm final tão trágico. O que todas têm em comum, no entanto, é
o alto grau de sordidez, de desprezo e indiferença às normas mais elementares
de civilidade e cidadania.
Boné de boiola – “Há poucos anos, eu
ainda me preocupava com o planeta que íamos deixar para nossos filhos”, diz a
dramaturga Maria Adelaide Amaral. “Hoje, me preocupa nas mãos de quem vamos
deixar o planeta”. A preocupação não é para menos. Essa linhagem parece só
reconhecer como espaço aquele identificado na escritura em nome da família.
Emporcalham praias e avenidas, estacionam sobre calçadas e atiram latas de
cerveja pela janela do carro como se o mundo fora de seus condomínios fechados
fosse uma grande lata de lixo. Evidentemente, não se pode generalizar. Mas
também não se pode negar que basta uma minoria barulhenta para conspurcar a
maioria silenciosa e civilizada.
Arrogantes e presunçosos, esses
moleques bem-nascidos e malcriados estão crescendo encastelados num mundo de
faz-de-conta. No planeta em que eles acham que vivem, o idioma não inclui
palavras como por favor ou obrigado, com licença ou sinto muito. Seres humanos
são apenas aqueles de pele branca que dirigem carros novos, de preferência
importados. Para eles, civilidade é comer com o talher certo em restaurantes de
Miami e cidadania é o direito de usar o telefone celular onde bem entender. Seu
contato com o mundo real se dá por meio de uma asséptica forma de ficção quase
científica: a televisão. “A maioria dos meus amigos não perde o 190 Urgente”,
diz um desses garotos.
As cenas de miséria e violência no país
são vistas, no entanto, com o distanciamento de quem assiste a um documentário,
por exemplo, sobre a longínqua Quirguízia. Não existe, enfim, vida inteligente
fora do condomínio. Ou melhor: não existe vida. E ponto. Presos a estereótipos,
julgam outros adolescentes e a si próprios pelas grifes que usam, que têm de
ser norte-americanas legítimas, é claro. Calvin Klein, Gap e Guess estão entre as
preferidas. Nem o boné escapa. Tem de ser Polo by Ralph Lauren, usado
obrigatoriamente com a aba encurvada. “Só boiola usa com a aba reta”, diz o
menino. Para essa geração, porém, os símbolos de status não se limitam a
grifes. Eles incorporaram as ambições materiais de seus pais e se preocupam
cada vez mais com coisas como viagens de compras aos Estados Unidos ou casa na
praia.
Revista Educação. São Paulo,
Editora Segmento, out. 1997, n. 19.
Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 140-2.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Imperceptível:
que não se percebe.
·
Sordidez: baixaria.
·
Simultaneamente: ao mesmo tempo.
·
Linhagem: origem, família.
·
Profusão: quantidade.
·
Conspurcar: sujar.
·
Retrair: recuar, fechar.
·
Civilidade: educação.
·
Barbárie: selvageria.
·
Asséptica: limpa.
·
Segmento: parte.
·
Estereótipo: tipo padronizado, que não varia.
02 – Localize o acidente
mencionado no início do texto no tempo e no espaço.
O acidente
ocorreu em São Paulo, no cruzamento entre as avenidas Rebouças e Henrique
Schaumman, pouco antes da meia-noite de uma quinta-feira.
03 – Identifique e
qualifique os dois grupos envolvidos no acidente.
No Chevette
branco, estava um grupo de adolescentes de classe média alta e no Gol verde, um
casal também de classe média alta.
04 – Como os adolescentes “resolveram”
o problema da batida? O que eles revelaram nessa solução?
Eles “resolveram”
o problema espancando o motorista do Gol. Revelaram agressividade, nenhuma
educação, desprezo e indiferença às normas mais elementares de civilidade e
cidadania.
05 – Uma das partes
envolvidas tinha razão no acidente? Por quê?
O motorista do Gol estava certo. O
motorista do Chevette era menor de idade, não possuía habilitação e passou o
sinal vermelho.
06 – Como você entende: “O
que todas têm em comum, no entanto, é o alto grau de sordidez, de desprezo e
indiferença às normas mais elementares de civilidade e cidadania.”?
Resposta pessoal do aluno.
07 – A verdadeira personagem
deste texto é toda uma fatia de uma geração. Como os membros desse segmento
veem:
a)
A ecologia?
Algo sem importância alguma.
b)
A boa educação?
Desconsideram.
c)
A realidade?
Algo distante, conhecido apenas por meio da televisão.
d)
A cortesia?
Nenhuma importância.
e)
O respeito humano?
Nenhuma preocupação.
08 – Por meio de que
critérios esses adolescentes julgam seus semelhantes?
Eles o fazem
pelas roupas de grife que usam.
09 – Quais são os valores
desses adolescentes?
São os valores materiais herdados dos
pais.
10 – O texto é dissertativo,
mas apresenta também uma parte narrativa. Identifique onde começa e onde
termina o trecho narrativo.
Vai do início até
“... convulsionar no chão”.
11 – Com que objetivo o autor
teria escrito o texto que analisamos?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A necessidade de denunciar um tipo de comportamento, cada
vez mais frequente, que se caracteriza pelo alto grau de sordidez, desprezo e
falta de respeito ao ser humano.
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