quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

REPORTAGEM: A VENDEDORA DE PEIXE E O CUSTO BRASIL - CLAUDIO DE MOURA CASTRO - COM GABARITO

 REPORTAGEM: A vendedora de peixe e o custo Brasil

         Claudio de Moura Castro – Ensaio

 Em países onde há solidariedade mais forte, o avanço é mais fácil. A esperteza brasileira sai muito cara

        Uma colega de trabalho aqui em Washington abriu uma microempresa para vender peixes do Pará, seu Estado natal. Não resisti a perguntar: Por que uma empresa nos Estados Unidos para vender peixe paraense, em tempos de DDD, fax e Internet à disposição de qualquer comerciante brasileiro de peixes, secos ou molhados? A resposta é simples, mas pouco edificante para as vaidades da pátria amada: americano não compra peixe de brasileiro. Não confia. Não está convencido de que será entregue na hora certa, de que não está podre ou mesmo de que foi pescado. E o pior é que isso não é superstição, preconceito ou má vontade. É algo aprendido à custa de prejuízos e dissabores.

        Já no tempo da borracha os seringueiros colocavam uma pedra na balança para pesar mais. Queixava-se um executivo de multinacional farmacêutica que seus fornecedores brasileiros nem sequer respondiam à correspondência. Um amigo do Espirito Santo, para conseguir exportar mármore, teve de lutar anos para convencer seus clientes americanos de que não era mais um a prometer e não cumprir. Custou aos exportadores de Petrolina entender que uma uvinha murcha escondida no fundo da caixa resultava no contêiner inteiro devolvido. Queixamo-nos dos estivadores, dos buracos nas estradas e dos impostos. É o custo Brasil, dizem todos, assim não podemos exportar! Porém, há outro custo Brasil, mais insidioso e não menos corrosivo: a falta de palavra e de cumprimento.

        Max Weber, em um trabalho clássico, mostra os benefícios que trazem ao comércio e à indústria as virtudes morais do protestantismo. Poder confiar no outro, manter a palavra ou não errar propositadamente no troco são fatores de desenvolvimento econômico tão poderosos quanto a força de trabalho e as maquinarias. Essa ideia antiga ganha roupagens novas nas teorias de Putnam sobre o capital social.

        Nas sociedades em que há forte solidariedade social, o desenvolvimento econômico é mais fácil. Todos jogam no mesmo time, não se dispersam forças defendendo-se das safadezas dos outros. As energias vão para as atividades produtivas, e não para assegurar-se dos direitos e interesses legítimos. Evita-se o custo de precaver-se para não ser passado para trás. Quando um não pode confiar na palavra do outro, multiplicam-se os formalismos legais para garantir o cumprimento. Ou se deixa de fazer o negócio se não há tempo, ou possibilidade, de estar protegido da safadeza do outro. O que podia ser resolvido pelo telefone requer uma visita e uma assinatura. Se o funcionário do banco não pode resolver sem a assinatura do seu chefe, são precisos muitos chefes para a infinidade de assinaturas requeridas em operações triviais. Quando o carro ou o televisor enguiça na garantia, o representante acha logo que tem safadeza do cliente e este que o fabricante vendeu propositadamente um produto defeituoso. O duelo inútil consome o tempo de todos.

        Quando todos são caretas e praticam no cotidiano as virtudes pequeno-burguesas, tudo é mais simples e mais barato, pois se economiza no controle, no vigia, no que vigia o vigia e assim por diante. Quando não confia no outro, a prestação do serviço e o pagamento são feitos cada um na hora mais conveniente para as partes. Mas, se há presunção de desonestidade, a operação parece troca de sequestrado pelo resgate, inconveniente para todos.

        Na verdade, há um círculo virtuoso ou vicioso nessa relação de confiança e desconfiança. Pesquisas demonstram: aqueles que confiam nos outros provocam nas pessoas com quem lidam um comportamento mais coreto. Isto é, quem confia é menos enganado pelo próximo do que os desconfiados, que geram nos outros comportamentos que confirmam as desconfianças. Quando todos são muito espertos, todos têm de gastar seu precioso tempo defendendo-se das espertezas dos outros. A celebrada esperteza brasileira é um dos mais horrendos custos Brasil.

      P.S.: Contou-me ontem a vendedora de peixe que acaba de levar calote de um dos seus fornecedores brasileiros.

                                   Veja, 30 jul. 1997.

          Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 180-2.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Edificante: construtiva.

·        Precaver-se: acautelar-se, prevenir-se.

·        Superstição: crença falsa.

·        Formalismos: medidas que valorizam excessivamente as formalidades, o cumprimento de determinações e requisitos.

·        Preconceito: ideia que se forma antes de observada a realidade.

·        Dissabores: contrariedades.

·        Triviais: comuns, corriqueiras.

·        Contêiner: caixa de aço para transporte de mercadoria.

·        Pequeno-burguesas: próprias da classe média.

·        Insidioso: traiçoeiro.

·        Presunção: suspeita, suposição.

·        Corrosivo: destrutivo.

·        Celebrada: louvada, divulgada de forma positiva.

02 – Por que é difícil vender peixe brasileiro nos Estados Unidos?

      Americano não compra peixe de brasileiro porque não confia na qualidade do produto nem no cumprimento dos prazos de entrega.

03 – De que aspecto do comportamento do brasileiro o texto trata?

      O texto trata da suposta esperteza, da falta de compromisso, do não-cumprimento da palavra dada, do desrespeito aos compromissos assumidos.

04 – Quais são as ideias que o texto opõe ao comportamento do brasileiro?

      São as ideias das virtudes morais: honestidade, solidariedade, correção, confiança no semelhante.

05 – Qual a principal vantagem da honestidade?

      No caso de que trata o texto é a economia de energia, de tempo e de dinheiro.

06 – O texto apresenta uma solução para os problemas provocados por esse comportamento dos brasileiros. Qual seria essa solução?

     A superação do desejo de levar vantagem em tudo e a adoção da honestidade e da solidariedade nos atos do dia-a-dia.

07 – Como você entende: “Quando todos são muito espertos, todos têm de gastar seu precioso tempo defendendo-se das espertezas dos outros”?

      A esperteza geral não traz benefícios para ninguém, mas provoca uma desgastante perda de tempo com milhares de precauções, desconfianças, cuidados para não ser passado para trás.

08 – Quais são as consequências da “esperteza brasileira”?

      O aumento do custo Brasil e o prejuízo decorrente desse aumento para a imagem do país no exterior.

09 – Você já ouviu falar na famosa “lei de Gerson”? Em que consiste? De onde surgiu essa expressão?

      Essa expressão remete ao famoso “jeitinho” do brasileiro, que procura, em todos os momentos, levar vantagem em tudo. Surgiu de um comerciante em que um famoso jogador de futebol da época – Gerson – aconselhava o público a não se esquecer de procurar levar vantagem em tudo.

10 – Como você entende: “... se há presunção de desonestidade, a operação parece troca de sequestrado pelo resgate, inconveniente para todos”?

      Resposta pessoal do aluno.

11 – O que você pensa sobre as afirmações contidas no texto?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

 

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