COMO
UM TRAPEZISTA DE CIRCO
Fora demasiada audácia atacar aquela
casa da rua Rui Barbosa. Perto dali, na praça do Palácio, andavam muitos
guardas, investigadores, soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavam
cada vez maiores, cada vez mais atrevidos. Porém havia muita gente na casa,
deram o alarme, os guardas chegaram. Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça. Brandão abriu no
mundo também. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. Estes tinham se despreocupado
dos outros, pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo. Sem-Pernas
corria de um lado para outro da rua, os guardas avançaram. Ele fez que ia
escapulir por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira. Mas em vez
de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu para a praça do
Palácio. Porque Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza.
Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco
podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que
fora a polícia. Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre
este é o único pensamento que vai com ele. Os guardas vêm nos seus calcanhares.
Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães
da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não
deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como
odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi
obrigado a abandonar porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma
alegria de criança.
Se fizera homem antes dos dez anos para
lutar pelo mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca
conseguira amar ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. Quando os
corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas
já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens. Amava unicamente o
seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. Uma
vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para
o filho que perdera e que pensava que tinha voltado. De outra feita outra
mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele
para colher migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado
pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente tinha
odiado. E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o
surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos
guardas. Se o levarem, o homem rirá de novo. Não o levarão. Vem em seus
calcanhares, mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande
elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para
os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de
um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se
fosse um trapezista de circo.
A praça toda fica em suspenso por um
momento. “Se jogou”, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha
como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O
cachorro late entre as grades do muro.
Jorge
Amado. Capitães de areia. São Paulo:
Companhia das letras, 2009. p. 242-3.
Abalar: fugir.
Picula: pega-pega
(brincadeira infantil).
Interpretação do texto:
1 – Nessa narrativa, as
personagens são nomeadas só por seus apelidos. Dê sua opinião: que motivo pode
ter levado o escritor a nomear as personagens com apelidos?
Resposta pessoal do aluno.
2 – Segundo o narrador, qual
a origem do ódio que Sem-Pernas nutre contra tudo e todos?
A origem está no fato de ele ter sido uma
criança abandonada.
3 – De que maneira
Sem-Pernas “se vinga” do mundo?
Cometendo suicídio diante da polícia e
dos transeuntes.
4 – A partir da linha 7, o
texto se concentra em uma personagem. O que tem isso a ver com o título do
capítulo?
O capítulo concentra-se no suicídio de
Sem-Pernas, que se lança do alto da cidade como um trapezista.
5 – Existe uma ironia entre
o título do capítulo e a personagem Sem-Pernas. Explique.
A ironia está no fato de um adolescente
aleijado comportar-se como trapezista.
6 – Releia esta passagem do
texto, quando Sem-Pernas pensa nos policiais que o perseguem: “Eram homens, de
pernas maiores que as suas [...]”. Se retirarmos a vírgula da frase (Eram
homens de pernas maiores que as suas...), ocorre alguma alteração de sentido?
Explique.
Sim. A vírgula garante a oposição criança-homens.
Sem a vírgula, o garoto estaria se incluindo na condição de homem (adulto).
7 – Na cidade onde você mora
há crianças de rua? Existe algum programa social de amparo a essas crianças?
Discuta o assunto com os colegas.
Resposta pessoal
do aluno.