Romance: O Guarani –
Fragmento
VII PELEJA – Jose de Alencar
Quando a família de D. Antônio de Mariz
gozava dos primeiros momentos de tranquilidade que sucediam a tantas aflições,
soou um grito na escada de pedra.
Cecília levantou-se estremecendo de
alegria e felicidade; tinha reconhecido a voz de Peri.
No momento em que ia correr ao encontro
do seu amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte
levadiça, e Peri chegava à porta da sala. D. Antônio de Mariz, sua mulher e sua
filha ficaram mudos de espanto e terror; Isabel caiu fulminada, como se a vida
lhe faltasse de repente.
Peri trazia nos seus ombros o corpo
inanimado de Álvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda.
Atravessando a sala, depôs sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto
lívido daquele que fora seu amigo, enxugou uma lágrima que lhe corria pela
face. Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que
envolvia aquela cena lúgubre; os aventureiros que haviam acompanhado Peri
quando passara no meio deles correndo, pararam na porta, tomados de compaixão e
respeito por aquela desgraça. Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri
salvo; seus olhos, apesar dos sofrimentos passados, ainda tinham lágrimas para
chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D.
Antônio de Mariz, sua dor era de um pai que havia perdido um filho; era a dor
muda e concentrada que abala as organizações fortes, sem contudo abatê-las.
Depois dessa primeira comoção produzida
pela chegada de Peri, o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a
narração breve dos acontecimentos, cuja peripécia tinha diante dos olhos.
Eis o que havia passado. Partindo na
véspera, no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno
terrível que tomara, Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília. Ia
procurar a vida em um contraveneno infalível, cuja existência só era conhecida
pelos velhos pajés da tribo, e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas
preparações medicinais. Sua mãe, quando ele partira para a primeira guerra, lhe
tinha revelado esse segredo que devia salvá-lo de uma morte certa no caso de
ser ferido por alguma seta ervada. Vendo o desespero de sua senhora, o índio
sentiu-se com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a
ganhar-lhe o corpo, e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que
devia restituir-lhe a saúde, o vigor e a existência. Contudo, quando
atravessava a mata parecia-lhe às vezes que já era tarde, que não chegaria a
tempo: então tinha medo de morrer longe de sua senhora, sem poder volver para
ela o seu último olhar. Arrependia-se quase de ter partido de casa e não
deixar-se ficar aos pés de Cecília até exalar o seu último suspiro; mas
lembrava-se que a menina o esperava, lembrava-se que ela ainda precisava de sua
vida e criava novas forças. Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da
floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma
cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão
incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob
essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor
revelara o que ai se passou. Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o
horizonte, as folhas se abriram, e Peri exausto de forças, vacilante,
emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade. Saiu do seu retiro. Mal
se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das
árvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e
colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um tanto as forças. Chegando à
beira do rio, Peri já sentiu o vigor que voltava, e o calor que começava a
animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à água e mergulhou. Quando voltou à
margem, era outro homem; uma reação se havia operado; seus membros tinham
adquirido a elasticidade natural; o sangue girava livremente nas veias. Então
tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe
oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o
selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno. O sol tinha raiado
havia horas; Peri, acabada a sua refeição, caminhava pensativo, quando ouviu uma
descarga de armas de fogo, cujo estrondo reboou pelo âmbito da floresta.
Lançou-se na direção dos tiros, e a pouca distância, num claro da mata, descobriu
um espetáculo grandioso. Álvaro e os seus nove companheiros divididos em duas
colunas de cinco homens, com as costas apoiadas às costas uns dos outros,
estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um
furor selvagem. Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que soltavam bramidos
espantosos, iam quebrar-se contra essa pequena coluna, que não parecia de
homens, mas de aço; as espadas jogavam com tanta velocidade que a tornavam
impenetrável; no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia morto.
Havia uma hora que durava esse combate,
começado com armas de fogo; mas os Aimorés atacavam com tanta fúria, que breve
tinham chegado a luta corpo a corpo e à arma branca.
No momento em que Peri assomava à
margem da clareira, um incidente veio modificar a face do combate.
O aventureiro que dava as costas a Álvaro,
levado pelo ardor da peleja, adiantou-se alguns passos para ferir um inimigo;
os selvagens o envolveram, deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa.
Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer prodígios de valor e de
coragem; cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos, uma vida
que se extinguia a seus pés num rio de sangue. Os selvagens redobravam de furor
contra ele, e cada vez o seu braço ágil movia-se com mais segurança e mais
certeza, fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brilhar nas
suas rápidas evoluções.
Desde porém que os Aimorés viram o moço
sem defesa pelas costas, e exposto aos seus golpes, concentraram-se nesse
ponto; um deles adiantando-se, ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e
atirou-a ao alto da cabeça de Álvaro.
O moço caiu; mas na sua queda a espada
descreveu ainda um semicírculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição;
a dor violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural.
Quando os índios iam precipitar-se
sobre o cavalheiro, Peri saltou no meio deles, e agarrando a espingarda que
estava a seus pés, fez dela uma arma terrível uma clava formidável, cujo poder
em breve sentiram os Aimorés. Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos, o
índio tomou Álvaro nos seus ombros, e abrindo caminho com a sua arma temível,
lançou-se pela floresta e desapareceu.
Alguns o seguiram; mas Peri voltou-se e
fê-los arrepender-se de sua ousadia; livrando-se do peso que levava, carregou a
espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o
perseguia mais de perto; os outros, que já o conheciam pelo combate da véspera,
retrocederam.
A ideia de Peri era salvar Álvaro, não
só pela amizade que lhe tinha, como por causa de Cecília, que ele supunha amar
o cavalheiro; vendo porém que o corpo continuava inanimado, acreditou que
Álvaro estava morto.
Apesar disto não desistiu do seu
propósito; morto ou vivo devia levá-lo àqueles que o amavam, ou para o
restituírem à vida, ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida.
ALENCAR, José de. “O Guarani”. 11. ed.
São Paulo, Ática, 1984. p. 191-3.
Fonte: Livro-
Português – Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p.224-5.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto, o que significa a palavra
tangapema?
É o nome da arma tacape.
02 – Que característica da
casa de D. Antônio de Mariz nos lembra um castelo medieval?
O fato de ter uma
ponte levadiça.
03 – Como pode ser
caracterizado o sentimento de Peri em relação à morte de Álvaro? Justifique sua
resposta com duas citações do texto.
O sentimento de
Peri era de tristeza profunda, conforme as passagens: “no rosto uma expressão
de tristeza profunda” e “enxugou uma lágrima”.
04 – O que pretendeu o
narrador ao demonstrar ao leitor o caráter extremamente humano e sentimental de
Peri?
Em princípio,
pode-se afirmar que o narrador procurou demonstrar que não havia diferenças
marcantes entre os sentimentos dos chamados civilizados e os sentimentos dos
selvagens, igualando Peri aos fidalgos.
05 – Apesar de se inscrever
na temática indianista, o narrador focaliza personagens do início da nossa
colonização. Que caráter isso dá ao texto?
Um caráter
histórico.