Romance: O primeiro beijo –
Fragmento
Machado de Assis
[...]
Tinha dezessete anos; pungia-me um
buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos,
eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância,
não se distinguia bem se era uma criança com fumos de homem, se um homem com
ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na
vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um
corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o
romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com eles nas ruas do nosso
século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à
margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por
compaixão, o transportou para os seus livros.
Sim, eu era esse garção bonito, airoso,
abastado; e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a
fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém a que
me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos
na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou
nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a «linda Marcela», como
lhe chamavam os rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um
hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade, porque a
opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima da invasão
francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela tinha apenas doze
anos. Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou
hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e mal
chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um
pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas
ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro
e de rapazes.
[...].
ASSIS,
Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
18. ed. São Paulo,
Ática, 1992. p. 39-0.
Fonte: Livro- Português
– Série – Novo Ensino Médio – Vol. único. Ed. Ática – 2000- p. 238-9.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das
palavras abaixo:
·
Garção: Rapaz.
·
Estafar: Cansar, fatigar.
·
Lazeira: Lepra.
·
Airoso: Esbelto, elegante.
·
Hortelão: Que trata de horta.
·
Rústica: Simples, campestre.
·
Lépida: Alegre, ágil.
·
Estouvamento: Imprudência, leviandade.
·
Berlinda: Pequeno coche de quatro rodas, suspenso entre dois varais.
02 – Por que se pode afirmar
que a visão que o narrador tem da sua personalidade ais dezessete anos não é
idealizada?
Porque o narrador
reconhece os seus defeitos de vaidoso e arrogante.
03 – Que observações o narrador
faz sobre o romantismo?
O narrador
refere-se ao romantismo como algo desgastado.
04 – “De todas porém a que
me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos
na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou
nada.” Este período faz-nos esperar que tipo de descrição da personagem
Marcela? Por quê?
Uma descrição realista, porque o narrador
deixa explícito que o que vai contar não tem nada de casto e que haverá de
dizer tudo.
05 – Quais os traços
marcantes da personalidade de Marcela?
Mentia, era
maliciosa, desconhecia a moralidade, era inescrupulosa, libertina, interessada
em dinheiro e em rapazes.
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