Artigo de divulgação científica: Novos arranjos nos lares brasileiros – Fragmento
Pesquisa identifica processo de
emancipação das mulheres no núcleo familiar a partir da década de 1970 no
Brasil
Rodrigo
de Oliveira Andrade – Edição 263 – jan. 2018
As transformações do papel da mulher na
sociedade brasileira durante o século XX, com conquistas importantes envolvendo
o direito ao voto, divórcio, trabalho e à educação, são bastante conhecidas. O
que agora começa a ficar evidente é que essas mudanças teriam estimulado um
processo de emancipação feminina também na esfera familiar, com destaque para a
conquista de autonomia financeira e a redução das taxas de fecundidade, que vêm
caindo progressivamente desde os anos 1960. Nos últimos anos, vários
pesquisadores se propuseram a analisar esse fenômeno. Um dos trabalhos mais
recentes é o da socióloga Nathalie Reis Itaboraí, pesquisadora em estágio de
pós-doutorado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
Com base em dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(Pnad-IBGE), ela analisou o processo de emancipação das mulheres nas famílias
brasileiras entre 1976 e 2012 à luz de uma perspectiva de classe e gênero. O
período é marcado por transformações na condição feminina, favorecidas por
mudanças na estrutura produtiva, mais oportunidades de educação e trabalho e
difusão de novos valores pelos meios de comunicação e pela segunda onda do
feminismo, iniciada nos anos 1960 – a primeira se deu na segunda metade do
século XIX. “Foi também nessa época que a desigualdade de gênero começou a ser
mais debatida no Brasil, sobretudo após a declaração, pelas Nações Unidas, de
1975 como o Ano Internacional das Mulheres e o período de 1976-1985 como a
Década da Mulher”, explica a pesquisadora.
Nathalie é autora do
livro Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): Uma perspectiva de
classe e gênero (Garamond), publicado a partir de sua tese de doutorado,
vencedora do prêmio de melhor tese de 2016 no concurso da Associação Nacional
de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) de obras científicas e
teses universitárias em ciências sociais. No estudo, ela procura ir além dos
indicadores de gênero que medem as mudanças na condição feminina na esfera
pública (participação no mercado de trabalho, representação política etc.),
frequentemente usados para comparar os avanços no Brasil com outros países.
Esses indicadores, segundo ela, não contemplam as diferenças entre grupos
sociais na sociedade brasileira e o impacto da desigualdade de gênero na
família e no trabalho doméstico (o cuidado da casa, dos filhos ou de familiares
idosos, por exemplo).
Para analisar como se deram as
transformações na experiência familiar das mulheres em diferentes classes
sociais, Nathalie adotou oito tipos de estratos ocupacionais. Eles abarcaram
desde trabalhadores rurais (classe 1), mais pobres, a profissionais com nível
superior (classe 8), mais abastados. Ainda que as desigualdades entre mulheres
de diferentes classes continuem grandes, as análises indicam que o
comportamento familiar feminino, independentemente da classe social, mudou na
mesma direção nos últimos 40 anos, com avanços significativos quanto à sua
autonomia, o que envolve maior controle sobre o próprio corpo, capacidade de
gerar renda própria e de controlar esses recursos.
Até o final da década de 1960, no
Brasil, o modelo tradicional de família era marcado por enormes assimetrias
entre homens e mulheres. Nos casais, o homem, em geral, era mais velho, mais
escolarizado e tinha mais renda. As mulheres trabalhavam apenas enquanto
solteiras, abandonando suas atividades após o casamento para se dedicar aos
serviços domésticos e cuidar dos filhos. Isso começou a mudar a partir dos anos
1970 (ver entrevista com a demógrafa
Elza Berquó na edição 262). Nathalie
verificou que a condição das mulheres melhorou em relação a seus cônjuges nesse
período. As diferenças de renda diminuíram nos casais, assim como as de idade e
de escolaridade.
Também o arranjo tradicional de
família, com o homem como único provedor e a mulher como dona de casa, deixou
de ser predominante. Em 1976, o percentual de mulheres casadas de 15 a 54 anos
que trabalhavam era de 25,4% na classe dos trabalhadores rurais (classe 1) e de
34,5% entre os profissionais com nível superior (classe 8). Em 2012, esse
número subiu para 46,4% e 75,5%, respectivamente. “Ter renda própria ajudou a
ampliar a autonomia econômica das mulheres, ainda que para as mais pobres isso
signifique apenas reduzir certas privações”, explica a socióloga. Em 1976, o
homem era o único provedor em 77% dos casais de trabalhadores rurais e em 63%
dos casais de profissionais com nível superior. Em 2012, esse percentual caiu
para 50,5% na classe 1 e para 24,1% na classe 8. “Homens e mulheres se tornaram
mais parecidos quanto ao engajamento profissional, ainda que as mulheres
enfrentem mais obstáculos no mercado de trabalho”, ela destaca.
Essas conclusões reforçam um fenômeno
que há algum tempo vem sendo observado no Brasil. A quantidade de lares
chefiados por mulheres aumentou 67% entre 2004 e 2014 no país, segundo dados do
IBGE. [...]
Tendência semelhante foi identificada
em 2006 pelo demógrafo Mario Marcos Sampaio, do Centro de Desenvolvimento e
Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ele é um
dos coordenadores de uma pesquisa publicada na revista Bahia Análise &
Dados que analisou o processo de emancipação feminina nas regiões
metropolitanas brasileiras entre 1990 e 2000. No estudo, eles verificaram que a
participação das mulheres na composição da renda familiar brasileira é
crescente, no papel de cônjuge ou no de filha.
Essas mudanças estão relacionadas a um
processo lento, mas contínuo, de ampliação das oportunidades de acesso à
educação às mulheres, iniciada em 1879, com a promulgação da Reforma Leôncio de
Carvalho, que permitiu às mulheres cursar o ensino superior. A partir dos anos
1970 essa ampliação passou a ser acompanhada de uma tendência de melhor
desempenho escolar das mulheres em relação aos homens, sobretudo nas famílias
mais pobres. Hoje, segundo dados publicados em 2014 pelo IBGE, 12,5% das
mulheres com 25 anos ou mais completaram o ensino superior em 2010. A participação
masculina no período foi de 9,9%. “Se existe uma estratégia nas classes baixas
de escolher um ou mais filhos para seguir estudando, é provável que sejam as
meninas, por terem, em média, um melhor desempenho escolar”, afirma Nathalie.
[...]
Apesar
dos avanços da condição da mulher, muitos obstáculos ainda precisam ser
superados. As que trabalham fora de casa ainda recebem 30% menos para ocupações
similares exercidas pelos homens, são minoria nos cargos de chefia e direção e
assumem as atividades do mercado de trabalho sem renunciar aos afazeres
domésticos. Também as mulheres com filhos enfrentam dificuldades para voltar ao
mercado de trabalho.
Outro problema: o tempo gasto pelas
mulheres com serviços domésticos em todas as classes sociais tende a ser maior
do que o gasto pelos homens. “Meninas de 10 a 14 anos gastam mais tempo com
serviço doméstico do que meninos da mesma idade”, diz Nathalie. Esses dados
estão alinhados com os divulgados em 2016 no relatório “Harnessing the power
of data for girls”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que
indica que garotas entre 5 e 14 anos despendem 40% mais tempo por dia em
tarefas domésticas não-remuneradas que os garotos. Em geral, o trabalho das
meninas é menos visível e subvalorizado.
Artigos
científicos
GARCIA, S. & BELLAMY, M. Assisted
Conception Services and Regulation within the brazilian context. JBRA
Assisted Reproduction. v. 19, n. 4, p. 198-203. nov. 2015.
BERQUÓ, E. S. et al. Reprodução após os 30 anos no
estado de São Paulo. Novos Estudos
Cebrap. n. 100, p. 9-25. nov. 2014.
Livro
ITABORAÍ, N. R. Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): Uma
perspectiva de classe e gênero. Rio de Janeiro: Garamond, 2016, 480 p.
ANDRADE, Rodrigo de Oliveira.
Novos arranjos nos lares brasileiros. Pesquisa Fapesp, São Paulo, ed. 263, jan.
2018. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/novos-arranjos-nos-lares-brasileiros.
Acesso em: 1º maio 2020.
Fonte: Linguagens em
Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas
Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 64-66.
Entendendo o artigo:
01
– Quais foram as principais mudanças no papel da mulher na sociedade brasileira
durante o século XX?
As principais mudanças
incluíram conquistas como o direito ao voto, ao divórcio, ao trabalho, e à
educação, além de um processo de emancipação feminina na esfera familiar.
02
– Como a emancipação feminina se manifestou nas famílias brasileiras a partir
dos anos 1970?
A emancipação
feminina se manifestou através da conquista de autonomia financeira pelas
mulheres, redução das taxas de fecundidade e mudanças nos arranjos familiares
tradicionais, com mais mulheres entrando no mercado de trabalho.
03
– Quais fatores contribuíram para as transformações na condição feminina na
sociedade brasileira?
Contribuíram as
mudanças na estrutura produtiva, maior acesso à educação e trabalho, difusão de
novos valores pelos meios de comunicação e o impacto da segunda onda do
feminismo.
04
– Qual foi o foco da pesquisa realizada por Nathalie Reis Itaboraí?
Nathalie Reis Itaboraí
focou em analisar o processo de emancipação das mulheres nas famílias
brasileiras entre 1976 e 2012, considerando as perspectivas de classe e gênero.
05
– Como Nathalie Reis Itaboraí classificou as mulheres em sua pesquisa?
Ela classificou as mulheres
em oito estratos ocupacionais, variando desde trabalhadores rurais (classe 1)
até profissionais com nível superior (classe 8).
06
– Quais mudanças ocorreram nas diferenças de renda e escolaridade entre homens
e mulheres nos casais brasileiros desde os anos 1970?
As diferenças de
renda, idade e escolaridade entre homens e mulheres nos casais diminuíram, com
as mulheres ganhando mais autonomia e engajamento profissional.
07
– Como a participação das mulheres no mercado de trabalho impactou a estrutura
familiar brasileira?
A maior
participação das mulheres no mercado de trabalho contribuiu para o aumento de
lares chefiados por mulheres e uma maior contribuição feminina na composição da
renda familiar.
08
– Qual a relação entre o desempenho escolar das mulheres e as mudanças na
estrutura familiar?
O melhor
desempenho escolar das mulheres, especialmente nas classes mais baixas, levou a
uma maior valorização da educação feminina, contribuindo para as transformações
na estrutura familiar.
09
– Quais desafios persistem para as mulheres no mercado de trabalho, segundo o
artigo?
As mulheres ainda
enfrentam desafios como receber 30% menos que os homens em ocupações similares,
menor representação em cargos de chefia e a dupla jornada de trabalho doméstico
e profissional.
10
– Qual a importância do trabalho não remunerado das mulheres e meninas no
contexto das desigualdades de gênero?
O trabalho
doméstico não remunerado realizado por mulheres e meninas é subvalorizado e contribui
para perpetuar as desigualdades de gênero, com as meninas despendendo mais
tempo nessas atividades do que os meninos.