sábado, 26 de abril de 2025

CONTO: O CORTIÇO - CAP. III - FRAGMENTO - ALUÍSIO DE AZEVEDO - COM GABARITO

 Conto: O CORTIÇO Cap. III – Fragmento

            Aluísio de Azevedo

        Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

        Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVV0kvKmQgxCkgJmuCTr05mp2XmIbvNcLLhmLkLbCLxLHxpGlz-D654EPXvC1Ok73qNOip5ky-QJv7q7-dJT-E7zfU760MlV7FVFjEIAHLNGePPiM40Zf6zHI2XDJu2IGtFs58dn3JLibxGdZa7EEaYY6DYWUpD2NHQMe1CMqhVYhXdlExRQ_wT9IcA0A/s320/maxresdefault.jpg

        A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

        Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.

        Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.

        O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

        [...]

Aluísio Azevedo. O cortiço. 9. ed. São Paulo: Ática,1970. p. 28-29.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 230-231.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      - Altercar: discutir com ardor.

      - Casco: o couro cabeludo; o conjunto formado pelos ossos do crânio; unha de certos paquidermes e mamíferos.

      - Coradouro: o mesmo que quaradouro; lugar onde se põe a roupa para corar ou quarar.

      - De uma assentada: de uma só vez.

      - Ensarilhar: emaranhar, enredar.

      - Fartum: mau cheiro.

      - Indolência: preguiça.

      - Latrina: recinto da casa com vaso sanitário ou escavação para receber dejetos.

      - Rezinga: discussão, rixa.

02 – Como o narrador descreve o despertar do cortiço, utilizando uma linguagem sensorial?

      O narrador descreve o despertar do cortiço através de uma rica linguagem sensorial. Em vez de dizer que as pessoas acordam, ele personifica o cortiço, afirmando que ele "acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas". Sons como o dissolver das últimas notas da guitarra, o acre do sabão, os bocejos "fortes como o marulhar das ondas", o tilintar das xícaras e o cheiro quente do café são destacados. Além disso, o narrador menciona o "confuso rumor" com risos, vozes altercando, grasnidos e cantos de animais, criando uma atmosfera sonora vibrante.

03 – Que detalhes indicam as condições de vida precárias e a falta de privacidade dos moradores do cortiço logo ao amanhecer?

      Vários detalhes apontam para as condições precárias e a falta de privacidade. A menção das roupas lavadas umedecendo o ar com cheiro de sabão ordinário, as pedras do chão sujas pelas lavagens, e as portas das latrinas que não "descansavam" com o constante entrar e sair, ilustram a falta de higiene e instalações sanitárias adequadas. A cena das mulheres prendendo as saias para não molhar-se nas bicas e das crianças fazendo suas necessidades no capinzal expõe a ausência de privacidade e o ambiente insalubre.

04 – Qual a impressão que o narrador transmite sobre a relação dos moradores com a higiene pessoal nas bicas?

      A impressão é de uma higiene apressada e coletiva. A descrição da "aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas" em volta das bicas, lavando o rosto "incomodamente" sob um fio d'água baixo, sugere a falta de recursos e a necessidade de compartilhar o espaço. Enquanto as mulheres se preocupam em não molhar as saias, os homens são descritos de forma mais animalesca, esfregando o rosto com vigor, sem se importar em molhar os pelos.

05 – Como a natureza é integrada na descrição do despertar do cortiço e qual efeito essa integração produz?

      A natureza é integrada de diversas formas. A aurora é comparada a "um suspiro de saudade perdido em terra alheia", conferindo uma delicadeza melancólica ao início do dia. Os sons dos animais, como o grasnar dos marrecos, o cantar dos galos e o cacarejar das galinhas, compõem a cacofonia matinal. A "gula viçosa de plantas rasteiras" e a imagem dos pés mergulhados na "lama preta e nutriente da vida" associam os moradores a uma força vital e instintiva da natureza. Essa integração reforça a ideia do cortiço como um organismo vivo e pulsante, onde a vida humana se mistura com o ambiente natural de forma intensa e por vezes selvagem.

06 – Qual a mudança observada no "rumor" do cortiço à medida que a manhã avança?

      Inicialmente, o "confuso rumor" do cortiço é composto por sons distintos, como risos, vozes altercando e barulhos de animais. No entanto, à medida que a manhã avança, esse rumor cresce e se condensa, deixando de ter vozes dispersas para se tornar "um só ruído compacto" que preenche todo o cortiço. Essa mudança reflete o aumento da atividade e da interação entre os moradores, culminando em um ambiente barulhento e agitado.

07 – Que sentimento ou sensação final o narrador busca transmitir ao descrever o despertar do cortiço?

      O narrador busca transmitir um sentimento de vitalidade animalesca e um "prazer animal de existir". A descrição da "fermentação sanguínea" e da "gula viçosa" sugere uma energia bruta e instintiva que impulsiona a vida no cortiço. A "triunfante satisfação de respirar sobre a terra" enfatiza a força da vida em meio às condições adversas, transmitindo uma sensação paradoxal de vigor e intensidade em um ambiente de aparente precariedade.

 

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