Conto: O CORTIÇO Cap. III – Fragmento
Aluísio de Azevedo
Eram cinco horas da manhã e o cortiço
acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas
alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem
dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na
indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite
antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro
de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera
nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As
pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas
pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de
espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças
congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das
ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar;
o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de
janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas
interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas
vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se
formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde,
grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos
saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e
os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente,
espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um
zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após
outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da
altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já
prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez
dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o
alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao
contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas
e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das
latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e
sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças
ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali
mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das
hortas.
O
rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se
não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o
cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e
resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se.
Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas
rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o
prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.
[...]
Aluísio Azevedo. O
cortiço. 9. ed. São Paulo: Ática,1970. p. 28-29.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed.
– Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 230-231.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
- Altercar: discutir com ardor.
- Casco: o
couro cabeludo; o conjunto formado pelos ossos do crânio; unha de certos
paquidermes e mamíferos.
- Coradouro: o mesmo que quaradouro; lugar onde se põe a roupa para corar
ou quarar.
- De uma assentada: de uma só vez.
- Ensarilhar: emaranhar, enredar.
- Fartum: mau
cheiro.
- Indolência: preguiça.
- Latrina: recinto da casa com vaso sanitário ou escavação para receber dejetos.
- Rezinga: discussão, rixa.
02 – Como o narrador descreve
o despertar do cortiço, utilizando uma linguagem sensorial?
O narrador
descreve o despertar do cortiço através de uma rica linguagem sensorial. Em vez
de dizer que as pessoas acordam, ele personifica o cortiço, afirmando que ele
"acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas
alinhadas". Sons como o dissolver das últimas notas da guitarra, o acre do
sabão, os bocejos "fortes como o marulhar das ondas", o tilintar das
xícaras e o cheiro quente do café são destacados. Além disso, o narrador
menciona o "confuso rumor" com risos, vozes altercando, grasnidos e
cantos de animais, criando uma atmosfera sonora vibrante.
03 – Que detalhes indicam as
condições de vida precárias e a falta de privacidade dos moradores do cortiço
logo ao amanhecer?
Vários detalhes
apontam para as condições precárias e a falta de privacidade. A menção das
roupas lavadas umedecendo o ar com cheiro de sabão ordinário, as pedras do chão
sujas pelas lavagens, e as portas das latrinas que não "descansavam"
com o constante entrar e sair, ilustram a falta de higiene e instalações
sanitárias adequadas. A cena das mulheres prendendo as saias para não molhar-se
nas bicas e das crianças fazendo suas necessidades no capinzal expõe a ausência
de privacidade e o ambiente insalubre.
04 – Qual a impressão que o
narrador transmite sobre a relação dos moradores com a higiene pessoal nas
bicas?
A impressão é de
uma higiene apressada e coletiva. A descrição da "aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas" em volta das bicas, lavando o rosto
"incomodamente" sob um fio d'água baixo, sugere a falta de recursos e
a necessidade de compartilhar o espaço. Enquanto as mulheres se preocupam em
não molhar as saias, os homens são descritos de forma mais animalesca,
esfregando o rosto com vigor, sem se importar em molhar os pelos.
05 – Como a natureza é
integrada na descrição do despertar do cortiço e qual efeito essa integração
produz?
A natureza é
integrada de diversas formas. A aurora é comparada a "um suspiro de
saudade perdido em terra alheia", conferindo uma delicadeza melancólica ao
início do dia. Os sons dos animais, como o grasnar dos marrecos, o cantar dos
galos e o cacarejar das galinhas, compõem a cacofonia matinal. A "gula
viçosa de plantas rasteiras" e a imagem dos pés mergulhados na "lama
preta e nutriente da vida" associam os moradores a uma força vital e
instintiva da natureza. Essa integração reforça a ideia do cortiço como um
organismo vivo e pulsante, onde a vida humana se mistura com o ambiente natural
de forma intensa e por vezes selvagem.
06 – Qual a mudança observada
no "rumor" do cortiço à medida que a manhã avança?
Inicialmente, o
"confuso rumor" do cortiço é composto por sons distintos, como risos,
vozes altercando e barulhos de animais. No entanto, à medida que a manhã
avança, esse rumor cresce e se condensa, deixando de ter vozes dispersas para
se tornar "um só ruído compacto" que preenche todo o cortiço. Essa
mudança reflete o aumento da atividade e da interação entre os moradores,
culminando em um ambiente barulhento e agitado.
07 – Que sentimento ou
sensação final o narrador busca transmitir ao descrever o despertar do cortiço?
O narrador busca
transmitir um sentimento de vitalidade animalesca e um "prazer animal de
existir". A descrição da "fermentação sanguínea" e da "gula
viçosa" sugere uma energia bruta e instintiva que impulsiona a vida no cortiço.
A "triunfante satisfação de respirar sobre a terra" enfatiza a força
da vida em meio às condições adversas, transmitindo uma sensação paradoxal de
vigor e intensidade em um ambiente de aparente precariedade.
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