Conto: A Causa Secreta – Fragmento
Machado de Assis
[...]
Garcia tinha-se formado em medicina, no
ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com
Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro
saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não
fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma
de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto,
entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de
quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele
recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e
sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cosido a
facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular
interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam
avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou
haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma
farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele.
Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia
devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que
dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num
tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para
casa sem saber mais nada.
[...]
Tempos depois, estando já formado e
morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma
gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade.
Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Sabe que estou casado?
— Não sabia.
—
Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco
domingo.
— Domingo?
— Não esteja forjando desculpas; não
admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato
deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora,
que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas
de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que
dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma
compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços,
pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e
cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi,
percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou
nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que
transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. [...]
A comunhão dos interesses apertou os
laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos
os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era
evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir
que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando
trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas
tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis
expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da
amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as
coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um
incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça.
Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas
vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais
atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição
nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o
médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais
experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou
criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me
faz mal; e creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro
acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas
pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos
animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia
perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia
ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que
era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em
que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato
estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em
que Maria Luísa saía aflita.
— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada
e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira
ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas
estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no
centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O
líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um
barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma
tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das
patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e
dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira.
Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma
satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas,
Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo
movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado,
chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os
novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não
chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela
serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato
cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele
ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a
chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns
farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a
repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio;
tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de
uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a
pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o
inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo
mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de
vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela
última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e
arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve
um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o
papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
-- Castiga sem raiva, pensou o médico,
pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode
dar: é o segredo deste homem.
Fortunato encareceu a importância do
papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora
era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito.
Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos.
Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma
redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete,
daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe
mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse
que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e
agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história.
Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados
os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas.
Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e
tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum
excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a
possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou
muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama
insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato
recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava
acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos,
remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A
doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos
tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição.
Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e
dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e
transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto
de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só
lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido.
Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de
Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia,
velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o
médico disse-lhe que repousasse um pouco.
— Vá descansar, passe pelo sono uma
hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá
da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir
outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala.
Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto.
Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver,
levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas.
Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa.
Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia
ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha
ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem
inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda
para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em
soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões,
lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde
ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito
longa, deliciosamente longa.
50 contos de Machado de
Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 368-376.
Fonte: Livro –
Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed.
– Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 222-226.
Entendendo o conto:
01 – Como Garcia e Fortunato
se conheceram inicialmente e qual foi a primeira impressão que Fortunato causou
em Garcia?
Garcia e
Fortunato se encontraram pela primeira vez à porta da Santa Casa. Fortunato
causou uma impressão em Garcia, embora esta pudesse ter sido esquecida se não
houvesse um segundo encontro poucos dias depois.
02 – O que despertou a atenção
de Garcia durante a peça de teatro em que ele e Fortunato se encontraram pela
segunda vez?
A atenção de
Garcia foi despertada pelo singular interesse de Fortunato pela peça, um
dramalhão cheio de violência. Nos lances dolorosos, a atenção de Fortunato
redobrava, e seus olhos seguiam avidamente os personagens, levando Garcia a
suspeitar de reminiscências pessoais do vizinho na peça.
03 – Como Garcia descreve a
aparência física de Fortunato após conhecê-lo melhor e qual era o contraste com
os seus modos?
Garcia descreve a
figura de Fortunato como inalterada, com olhos que eram "chapas de
estanho, duras e frias" e outras feições não atraentes. Havia um contraste
com os seus obséquios, que, embora não resgatassem sua natureza, ofereciam
alguma compensação.
04 – Qual foi a impressão de
Garcia sobre o relacionamento entre Fortunato e Maria Luísa após algumas
visitas à casa do casal?
Garcia percebeu
que havia uma dissonância de caracteres e pouca ou nenhuma afinidade moral
entre Fortunato e Maria Luísa. Notou também que os modos da mulher para com o
marido transcendiam o respeito, confinando na resignação e no temor.
05 – Que sentimento começou a
surgir em Garcia em relação a Maria Luísa e como ele tentou lidar com isso?
Garcia começou a
sentir amor por Maria Luísa. Ele tentou expeli-lo para que sua relação com
Fortunato permanecesse apenas a de amizade, mas não conseguiu. Ele apenas
trancou esse sentimento, embora Maria Luísa tenha compreendido tanto a afeição
quanto o seu silêncio.
06 – Qual o incidente que
revelou ainda mais a situação de Maria Luísa aos olhos de Garcia e qual o
pedido incomum que ela fez ao médico?
O incidente foi o
hábito de Fortunato de estudar anatomia e fisiologia rasgando e envenenando
animais em casa, perturbando Maria Luísa. Ela pediu a Garcia que, como se fosse
um pedido dele, convencesse o marido a cessar tais experiências, alegando que
lhe faziam mal.
07 – Descreva a cena chocante
presenciada por Garcia no gabinete de Fortunato e qual a reação do médico
diante do que viu?
Garcia viu
Fortunato torturando um rato, cortando suas patas e aproximando-o repetidamente
de uma chama com um sorriso de satisfação. Garcia ficou horrorizado e pediu
para que ele matasse o animal logo, mas a serenidade prazerosa de Fortunato o
intimidou.
08 – Qual a interpretação de
Garcia sobre o comportamento de Fortunato ao torturar o rato e que comparação
ele faz para tentar entender a motivação do amigo?
Garcia
interpretou o comportamento de Fortunato como uma necessidade de encontrar uma
sensação de prazer através da dor alheia, considerando isso o
"segredo" do amigo. Ele compara essa atitude a um "diletantismo
sui generis" e a uma "redução de Calígula", sugerindo uma busca
por sensações extremas e um certo sadismo.
09 – Como Fortunato reagiu à
doença e à morte de Maria Luísa, segundo o narrador?
Fortunato recebeu
a notícia da doença de Maria Luísa como um golpe e tentou todos os recursos
para curá-la, pois a amava a seu modo e estava acostumado com ela. No entanto,
nos últimos dias, seu egoísmo subjugou qualquer outra afeição, e ele observou a
agonia da esposa sem demonstrar emoção, apenas sentindo-se aturdido ao ficar
sozinho após a morte dela.
10 – Qual a cena final
surpreendente presenciada por Fortunato e qual a sua reação ao ver Garcia
beijando o cadáver de Maria Luísa?
A cena final
mostra Fortunato vendo Garcia beijar a testa do cadáver de Maria Luísa com
lágrimas de amor e desespero. Fortunato ficou assombrado, interpretando o beijo
não como amizade, mas como o possível fim de um adultério. Embora não sentisse
ciúmes, sua vaidade ressentiu o gesto, e ele saboreou tranquilamente a explosão
de dor moral de Garcia.
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