sábado, 26 de abril de 2025

CONTO: A CAUSA SECRETA - FRAGMENTO - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: A Causa Secreta – Fragmento

            Machado de Assis

        [...] 

        Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgmsT1yxv9IuPF00r1y-a7gW9PRUrIPl1nrkj9d4ISzbo-zcdIj5lphv_BjUspEA4iYQ76qVWiuPidPTMb0NiPp0_iEfKrxatO3wXjpY4gcKcGgakvCar_6DK5BqbOUJzsFpHeFPjtZ9-9FVbbI0BzM9RRlvIgvG1BWYdAFLjhP8mIo_iShX8PX5_q57ko/s1600/CAUSA.jpg


        A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. 

        [...]

        Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. 

        — Sabe que estou casado? 

        — Não sabia. 

        — Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. 

        — Domingo? 

        — Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. 

        Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. [...]

        A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. 

        No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências. 

        — Mas a senhora mesma... 

        Maria Luísa acudiu, sorrindo: 

        — Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... 

        Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. 

        — Deixe ver o pulso. 

        — Não tenho nada. 

        Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. 

        Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. 

        — Que é? perguntou-lhe. 

        — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

        Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. 

        — Mate-o logo! disse-lhe. 

        — Já vai.  

        E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. 

        Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. 

        Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. 

        -- Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem. 

        Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

        Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

        — Fracalhona! 

        E voltando-se para o médico: 

        — Há de crer que quase desmaiou? 

        Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. 

        Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. 

        Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 

        De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 

        — Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. 

        Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. 

        Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.  Olhou assombrado, mordendo os beiços. 

        Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. 

50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 368-376.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 222-226.

Entendendo o conto:

01 – Como Garcia e Fortunato se conheceram inicialmente e qual foi a primeira impressão que Fortunato causou em Garcia?

      Garcia e Fortunato se encontraram pela primeira vez à porta da Santa Casa. Fortunato causou uma impressão em Garcia, embora esta pudesse ter sido esquecida se não houvesse um segundo encontro poucos dias depois.

02 – O que despertou a atenção de Garcia durante a peça de teatro em que ele e Fortunato se encontraram pela segunda vez?

      A atenção de Garcia foi despertada pelo singular interesse de Fortunato pela peça, um dramalhão cheio de violência. Nos lances dolorosos, a atenção de Fortunato redobrava, e seus olhos seguiam avidamente os personagens, levando Garcia a suspeitar de reminiscências pessoais do vizinho na peça.

03 – Como Garcia descreve a aparência física de Fortunato após conhecê-lo melhor e qual era o contraste com os seus modos?

      Garcia descreve a figura de Fortunato como inalterada, com olhos que eram "chapas de estanho, duras e frias" e outras feições não atraentes. Havia um contraste com os seus obséquios, que, embora não resgatassem sua natureza, ofereciam alguma compensação.

04 – Qual foi a impressão de Garcia sobre o relacionamento entre Fortunato e Maria Luísa após algumas visitas à casa do casal?

      Garcia percebeu que havia uma dissonância de caracteres e pouca ou nenhuma afinidade moral entre Fortunato e Maria Luísa. Notou também que os modos da mulher para com o marido transcendiam o respeito, confinando na resignação e no temor.

05 – Que sentimento começou a surgir em Garcia em relação a Maria Luísa e como ele tentou lidar com isso?

      Garcia começou a sentir amor por Maria Luísa. Ele tentou expeli-lo para que sua relação com Fortunato permanecesse apenas a de amizade, mas não conseguiu. Ele apenas trancou esse sentimento, embora Maria Luísa tenha compreendido tanto a afeição quanto o seu silêncio.

06 – Qual o incidente que revelou ainda mais a situação de Maria Luísa aos olhos de Garcia e qual o pedido incomum que ela fez ao médico?

      O incidente foi o hábito de Fortunato de estudar anatomia e fisiologia rasgando e envenenando animais em casa, perturbando Maria Luísa. Ela pediu a Garcia que, como se fosse um pedido dele, convencesse o marido a cessar tais experiências, alegando que lhe faziam mal.

07 – Descreva a cena chocante presenciada por Garcia no gabinete de Fortunato e qual a reação do médico diante do que viu?

      Garcia viu Fortunato torturando um rato, cortando suas patas e aproximando-o repetidamente de uma chama com um sorriso de satisfação. Garcia ficou horrorizado e pediu para que ele matasse o animal logo, mas a serenidade prazerosa de Fortunato o intimidou.

08 – Qual a interpretação de Garcia sobre o comportamento de Fortunato ao torturar o rato e que comparação ele faz para tentar entender a motivação do amigo?

      Garcia interpretou o comportamento de Fortunato como uma necessidade de encontrar uma sensação de prazer através da dor alheia, considerando isso o "segredo" do amigo. Ele compara essa atitude a um "diletantismo sui generis" e a uma "redução de Calígula", sugerindo uma busca por sensações extremas e um certo sadismo.

09 – Como Fortunato reagiu à doença e à morte de Maria Luísa, segundo o narrador?

      Fortunato recebeu a notícia da doença de Maria Luísa como um golpe e tentou todos os recursos para curá-la, pois a amava a seu modo e estava acostumado com ela. No entanto, nos últimos dias, seu egoísmo subjugou qualquer outra afeição, e ele observou a agonia da esposa sem demonstrar emoção, apenas sentindo-se aturdido ao ficar sozinho após a morte dela.

10 – Qual a cena final surpreendente presenciada por Fortunato e qual a sua reação ao ver Garcia beijando o cadáver de Maria Luísa?

      A cena final mostra Fortunato vendo Garcia beijar a testa do cadáver de Maria Luísa com lágrimas de amor e desespero. Fortunato ficou assombrado, interpretando o beijo não como amizade, mas como o possível fim de um adultério. Embora não sentisse ciúmes, sua vaidade ressentiu o gesto, e ele saboreou tranquilamente a explosão de dor moral de Garcia.

 

 

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