terça-feira, 8 de abril de 2025

CONTO: O PRIMEIRO BEIJO - (FRAGMENTO) - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: O primeiro beijo – Fragmento

            Clarice Lispector

        Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBXKMAZwPZkKeLYhQSEran2HXk3DBYYWf11hK4KtUH39f6ixd4ZtisB66uubSHgmz4KOtUFRPIhrrx_gUtBaXIzsXLNIItmkgQ0g_5RJzAnH50dpiTo4H44gp_Zg0zFkbTilbBrphcRfavhb9juG38mP4ZOt-8O1j1DJ6667osLayVW9RHLYsm1M7jP4s/s320/O%20PRIMEIRO.jpg


        -- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?

        Ele foi simples:

        -- Sim, já beijei antes uma mulher.

        -- Quem era ela? – perguntou com dor.

        Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

        O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

        E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

        E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engolia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

        A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

        E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.

        Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

        O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada.

        O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

        De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga.

        Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

        Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

        E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

        [...]

        Ele a havia beijado.

        Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva.

        [...]

        Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

        Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...

        Ele se tornara homem.

Clarice Lispector. O primeiro beijo. São Paulo: Ática, 1989. p. 20-22.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 7ª Série – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 1ª ed. 15ª reimpressão – São Paulo: Atual Editora, 2003. p. 64-65.

Entendendo o conto:

01 – Qual a situação inicial do casal apresentada no fragmento?

      O casal havia iniciado um namoro recentemente e ambos estavam "tontos", vivenciando o amor e o ciúme que o acompanha. Eles estavam mais murmurando que conversando.

02 – Qual a pergunta que a namorada faz ao rapaz sobre seus beijos anteriores?

      Ela pergunta se ele já havia beijado outra mulher antes de beijá-la, insistindo que ele dissesse apenas a verdade.

03 – Como o narrador descreve a tentativa do rapaz de contar sobre seu beijo anterior?

      O narrador afirma que ele tentou contar "toscamente", indicando que o rapaz tinha dificuldade em expressar a situação.

04 – Em que cenário o rapaz se recorda de sua experiência anterior ao beijo com a namorada?

      Ele se lembra de estar em um ônibus de excursão, subindo uma serra, no meio de outros jovens em algazarra, sentindo a brisa no rosto e experimentando uma intensa sede.

05 – Qual era a causa da intensa sede sentida pelo rapaz na lembrança?

      A sede era causada pela brincadeira com os colegas, falar alto acima do barulho do motor, rir, gritar, pensar e sentir, que deixaram sua garganta seca, além da falta de água.

06 – Onde o rapaz finalmente encontra a água para matar sua sede na lembrança, e qual é a sua surpreendente descoberta ao beber?

      Ele encontra a água em um chafariz de pedra na curva da estrada. Ao beber, de olhos fechados, ele percebe um contato gélido em seus lábios e, ao abrir os olhos, descobre que a água jorrava da boca da estátua de uma mulher de pedra, na qual ele havia colado seus lábios.

07 – Qual a transformação que o rapaz vivencia após a lembrança do "primeiro beijo" e a revelação que jorra de seu interior?

      Ele sofre um tremor interno e sente o mundo se transformar, experimentando a vida como algo inteiramente novo. A verdade que jorra de seu interior, causando-lhe susto e orgulho, é que ele se tornara homem.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário