Relato: A arte de pintar
Luís Donisete Benzi Grupioni
A algazarra das crianças pequenas e a
voz estridente de algumas mulheres xikrin – índios que habitam o sul do Pará –
indicam que o grupo que ontem tinha saído bem cedo para apanhar batata-doce,
inhame, milho, mandioca e mamão, na roça, hoje está na aldeia. Pouco a pouco,
um grupo de mulheres vai se reunindo na casa da mulher chefe, para fazer juntas
a primeira refeição do dia e iniciarem mais uma sessão de pinturas coletivas.
Mais ou menos a cada oito dias, as mulheres casadas e que têm filhos se reúnem
para pintar umas às outras, organizando-se em pequenos grupos, de acordo com a
idade e com a quantidade de filhos. Num canto da casa, mulheres jovens com um
filho ou dois; noutro, as mais velhas com três ou quatro filhos, todas comendo
frutos trazidos da roça.

É a primeira vez que Irepu toma parte
numa dessas sessões de pintura. Por ter um filho recém-nascido e já haver
cumprido o período de resguardo – que pai e mãe devem respeitar após o
nascimento dos filhos –, ela pode ingressar na categoria das jovens mulheres
com filhos. Assim, Irepu vai participar da sessão, pintando uma companheira e
sendo pintada por ela.
Ao longo de toda a vida as mulheres
xikrin vão se aperfeiçoando na arte e na técnica de pintar o corpo, uma
atividade de grande interesse e importância na sociedade em que vivem. Crianças
pequenas pintam abóboras e bonecas de plástico que são levadas para a aldeia.
Quando atingem os 10 ou 12 anos, suas mães permitem que pintem seus irmãos
menores. Assim, quando uma moça tem seu primeiro filho, ela já sabe pintar. Em
sua casa, longe do olhar crítico das mulheres mais velhas, ela embala seu bebê
ao som das cantigas de seu povo e de pinceladas de tinta. É pintando o filho e
observando as mulheres mais velhas pintando outras mulheres da mesma categoria
de idade que uma Xikrin vai se aperfeiçoando no domínio da técnica de pintar.
Isto exige muito tempo e prática. É preciso adquirir segurança no uso do pincel
e aprender noções de proporção. Pintando regularmente seus filhos, as mulheres
vão “treinando a mão” e aprendendo que, para os Xikrin, gastar horas pintando o
filho é uma demonstração de carinho e interesse.
Na casa da mulher do chefe as mulheres
conversam. O momento da pintura é sempre de descontração, prazer, divertimento
e também de muitas fofocas, quando se colocam os assuntos em dia. Discutem
sobre vários desenhos possíveis e então se decidem sobre o motivo da pintura
que farão hoje. A pintura é igual para todas e o desenho é o mesmo no rosto e
no corpo. Formando triângulos, quadrados ou executando linhas retas paralelas,
elas elaboram os vários desenhos que representam animais e plantas. Uma amiga
de Irepu começa a pintar seu rosto, usando uma pequena lasca de taquara que lhe
serve como pincel. Com traços firmes, fazendo o desenho do jabuti, que foi
escolhido. O deslizar do pincel no rosto produz uma agradável sensação de
frescor. Numa pequena cuia de cabaça está a tinta, preparada por algumas
mulheres com a mistura de jenipapo mascado, carvão e um pouco de água.
Depois de pintar o rosto de Irepu, sua
companheira cobre-lhe o corpo todo com tinta aplicada com a mão e em seguida
passa um pente para formar as listas. Enquanto espera a pintura secar e a volta
da companheira que tinha ido em casa buscar um abano de palha, Irepu pega o
filho, que estava com sua irmã, para amamentá-lo. Ele rapidamente adormece em
seu colo e ela pode então retribuir a pintura na amiga, que já tinha voltado.
Terminada a sessão de pintura, as
mulheres voltam para suas casas. Algumas continuam tomando conta das crianças,
enquanto outras vão preparar comida. Com o entardecer, elas se juntam
novamente, agora na frente da casa da mulher do chefe. Dali observam os jovens
trazerem folhas de palmeira-buriti bem verdes, que são colocadas no meio da
praça, onde se sentam os rapazes e os mais velhos, formando o conselho dos
homens da aldeia. Hoje, Irepu não está prestando atenção ao que é dito no
centro da aldeia, mas admirando o filho, todo pintado, que dorme docemente nos
seus braços, escutando os comentários que outras mulheres fazem sobre a pintura
que ela realizou em sua amiga. Irepu se sente diferente, pois hoje se iniciou
numa nova fase de uma das artes mais apreciadas pelas mulheres xikrin: a arte
de pintar-se.
GRUPIONI, Luís D. B.
Viagem ao mundo indígena. São Paulo, Berlendis & Vertecchia, 1997. p.
15-20. (Coleção Pawana).
Fonte: Linguagem Nova.
Faraco & Moura. 5ª série – 17ª ed. 3ª impressão – São Paulo – Editora Ática
– 2003. p. 90-92.
Entendendo o relato:
01 – Quem são os Xikrin e onde
eles habitam?
Os Xikrin são índios que habitam o sul do
Pará.
02 – Com que frequência as
mulheres Xikrin casadas se reúnem para pintar?
As mulheres casadas e que têm filhos se
reúnem aproximadamente a cada oito dias para pintar umas às outras.
03 – Qual é o período de
resguardo mencionado no relato?
O período de
resguardo é o tempo que pai e mãe devem respeitar após o nascimento dos filhos,
durante o qual eles evitam certas atividades.
04 – Como as mulheres Xikrin
aprendem a arte de pintar o corpo?
As mulheres
Xikrin começam a aprender a arte de pintar o corpo desde pequenas, pintando
abóboras e bonecas. Quando atingem os 10 ou 12 anos, podem pintar seus irmãos
menores, e continuam praticando ao longo da vida.
05 – Qual é o significado de
pintar os filhos para as mulheres Xikrin?
Para os Xikrin,
gastar horas pintando o filho é uma demonstração de carinho e interesse. É
também uma forma de treinar a técnica de pintura.
06 – Que tipos de desenhos as
mulheres Xikrin fazem em suas pinturas?
As mulheres
Xikrin fazem desenhos que representam animais e plantas, como triângulos,
quadrados e linhas retas paralelas.
07 – Como é a sessão de
pintura na casa da mulher do chefe descrita no relato?
A sessão de
pintura é um momento de descontração, prazer e divertimento, com muitas
conversas e fofocas. As mulheres discutem sobre os desenhos possíveis e
escolhem o motivo da pintura que farão. A pintura é igual para todas.
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