Romance: O Guarani – Segunda parte – Fragmento
José de Alencar
Peri
– VIII – O BRACELETE
O que Cecília viu, debruçando-se à
janela, gelou-a de espanto e horror.
De todos os lados surgiam répteis
enormes que, fugindo pelos alcantis, lançavam-se na floresta; as víboras
escapavam das fendas dos rochedos, e aranhas venenosas suspendiam-se aos ramos
das árvores pelos fios da teia.

No meio do concerto horrível que
formava o sibilar das cobras e o estrídulo dos grilos, ouvia-se o canto
monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo.
O índio tinha desaparecido; apenas se
via o reflexo da luz do facho.
Cecília, pálida e trêmula julgava
impossível que Peri não estivesse morto e já quase devorado por esses monstros
de mil formas; chorava o seu amigo perdido, e balbuciava preces pedindo a Deus
um milagre para salvá-lo.
Às vezes fechava os olhos para não ver
o quadro terrível que se desenrolava diante dela, e abria-os logo para
perscrutar o abismo e descobrir o índio.
Em um desses momentos um dos insetos
que pululavam no meio da folhagem agitada esvoaçou, e veio pousar no seu ombro;
era uma esperança, um desses lindos coleópteros verdes que a poesia popular
chama lavandeira-de-deus.
A alma nos momentos supremos de aflição
suspende-se ao fio o mais tênue da esperança; Cecília sorriu-se entre as
lágrimas, tomou a lavandeira entre os seus dedos rosados e acariciou-a.
Precisava esperar; esperou,
reanimou-se, e pôde preferir uma palavra ainda com a voz trêmula e fraca:
— Peri!
No curto instante que sucedeu a este
chamado, sofreu uma ansiedade cruel; se o índio não respondesse, estava morto;
mas Peri falou:
— Espera, senhora!
Entretanto, apesar da alegria que lhe
causaram estas palavras, pareceu à menina que eram pronunciadas por um homem
que sofria: a voz chegou-lhe ao ouvido surda e rouca.
— Estás ferido? perguntou inquieta.
Não houve resposta; um grito agudo
partiu do fundo do abismo, e ecoou pelas fráguas; depois a cauã cantou de novo,
e uma cascavel silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos.
Cecília vacilou; soltando um gemido
plangente caiu desmaiada de encontro à almofada da janela.
Quando, passado um quarto de hora, a
menina abriu os olhos, viu diante dela Peri que chegava naquele momento, e lhe
apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retrós, dentro da qual havia uma
caixinha de velado escarlate.
Sem se importar com a joia, Cecília
ainda impressionada pelo quadro horrível que presenciara, tomou as mãos do
índio e perguntou-lhe com sofreguidão:
— Não estás mordido, Peri?... Não
sofres?... Dize!
O índio olhou-a admirado do susto que
via no seu semblante.
— Tiveste medo, senhora?
— Muito! exclamou a menina.
O índio sorriu.
— Peri é um selvagem, filho das
florestas; nasceu no deserto, no meio das cobras; elas conhecem Peri e o
respeitam.
O índio dizia a verdade; o que acabava
de fazer era a sua vida de todos os dias no meio dos campos: não havia nisto o
menor perigo.
Tinha-lhe bastado a luz do seu facho e
o canto da cauã que ele imitava perfeitamente para evitar os répteis venenosos
que são devorados por essa ave. Com este simples expediente de que os selvagens
ordinariamente se serviam quando atravessavam as matas de noite, Peri descera e
tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de
seda, que adivinhou ser o objeto dado por Álvaro.
Soltou então um grito de prazer que
Cecília tomou por grito de dor: assim como antes tinha tomado o eco do
precipício por uma voz cava e surda.
Entretanto Cecília que não podia
compreender como um homem passava assim no meio de tantos animais venenosos sem
ser ofendido por eles, atribuía a salvação do índio a um milagre, e considerava
a ação simples e natural que acabava de praticar como um heroísmo admirável. A
sua alegria por ver Peri livre de perigo, e por ter nas suas mãos a prenda de
Álvaro foi tal, que esqueceu tudo o que se tinha passado.
[...].
ALENCAR, José de. O
guarani. 24. ed. São Paulo, Ática, 1999. p. 1225-126. (Série Bom Livro).
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 203-204.
Entendendo o romance:
01 – Qual a reação de Cecília
ao observar a cena na janela?
Cecília fica
gelada de espanto e horror ao ver répteis enormes surgindo de todos os lados e
se lançando na floresta.
02 – O que Cecília pensa ter
acontecido com Peri?
Cecília acredita
que Peri está morto e sendo devorado pelos monstros, devido à visão terrível
que presenciou.
03 – Qual o símbolo de
esperança que surge para Cecília em meio ao desespero?
Uma esperança, um
inseto verde chamado lavadeira-de-deus, pousa no ombro de Cecília, trazendo-lhe
um fio de esperança.
04 – Como Peri consegue
encontrar e recuperar a joia de Álvaro?
Peri utiliza seu
conhecimento da floresta e imita o canto da cauã para afastar os répteis
venenosos, encontrando a bolsa de seda presa aos ramos de uma trepadeira.
05 – Qual a reação de Cecília
ao ver Peri retornar?
Cecília fica
aliviada e preocupada com a segurança de Peri, perguntando se ele foi mordido
ou ferido.
06 – Como Peri explica sua
capacidade de andar ileso entre os animais venenosos?
Peri explica que,
como um selvagem filho das florestas, ele nasceu no meio das cobras, que o
conhecem e o respeitam.
07 – Qual a interpretação de
Cecília sobre a ação de Peri?
Cecília, não
compreendendo a habilidade de Peri, atribui sua sobrevivência a um milagre e
considera sua ação um ato de heroísmo admirável.
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