Crônica: Os tatuadores – Fragmento
João do Rio
– Quer marcar?
Era um petiz de doze anos talvez. A
roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de
dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne
de adolescente, sentado a uma porta, indagou:
– Por quanto?
– É conforme – continuou o petiz. É
inicial ou coroa?
– É um coração!

– Com nome dentro?
O rapaz hesitou. Depois:
– Sim, com nome: Maria Josefina.
– Fica tudo por uns seis mil réis.
Houve um momento em que se discutiu o
preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um
outro se acercou.
– Ó moço, faço eu; não escute
embromações!
– Pagará o que quiser, moço.
O rapazola sorria. Afinal resignou-se,
arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O
petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e
começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A
tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: "O mais bruto homem sente
que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e
quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele"?
A palavra tatuagem é relativamente
recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no
ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou to tahou,
desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha
da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder
o pelo, descobriu a tatuagem. [...]
Os tatuadores têm várias maneiras de
tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre
nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente,
as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa,
tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador
trabalha como as senhoras bordam.
Lombroso diz que a religião, a
imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões
nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa
usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da
cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance
imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos,
criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem
mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.
Andei
com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados
morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros,
os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era
bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A
outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição é que me
proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada
atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do
desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das ideias patrióticas do
indivíduo, da sua qualidade primordial.
Quase todos os rufiões e os rufistas do
Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que
significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário
dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um
Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse
símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados
e sem coragem de sová-lo.
– Parece que estão dando em Jesus!
A sereia dá lábia, a cobra atração, o
peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas
da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas
da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.
Os lugares preferidos são as costas, as
pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das
amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um
regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais,
corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de
luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro,
desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.
– No peito não! cuspiu o mulato, no
peito eu quero Nossa Senhora!
A sociedade, obedecendo à corrente das
modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é
que – e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca
explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que
fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase
incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços,
enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete
de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do
corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu
reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos
intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a
marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados
pela inexorável fatalidade.
Há tatuagens religiosas, de amor, de
nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens
obscenas.
A vida no seu feroz egoísmo é o que
mais nitidamente ideografa a tatuagem.
As meretrizes e os criminosos nesse
meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um
corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o
nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e
marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.
– Olha, não venhas com presepadas, meu
macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o
chinelo, o seu nome odiado.
É a maior das ofensas: nome no
calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...
[...].
RIO, João do. A alma
encantadora das ruas. Org. de Raul Antelo. São Paulo, Companhia das Letras,
1997. p. 100-111.
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 281.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a origem da palavra
"tatuagem", segundo o texto?
A palavra
"tatuagem" foi introduzida no ocidente pelo navegador Loocks,
derivada do termo polinésio "tatou" ou "to tahou", que
significa desenho. Alguns acreditam que a palavra surgiu do ruído da agulha na
pele: "tac, tac".
02 – Quais os métodos de
tatuagem mencionados no texto?
O texto menciona
três métodos principais: picadas, incisão e queimadura subepidérmica. No
Brasil, as técnicas mais comuns são a incisão, trazida pelos africanos, e as
picadas, feitas com três agulhas amarradas e embebidas em tinta.
03 – Quais as motivações para
as tatuagens, de acordo com Lombroso?
Lombroso lista várias motivações,
incluindo religião, imitação, ócio, vontade, espírito de grupo, paixões nobres,
paixões eróticas e atavismo. O texto também menciona a influência do ambiente
como um fator relevante.
04 – Quem são os principais
usuários de tatuagens na sociedade descrita no texto?
A classe baixa da
cidade, incluindo marinheiros, soldados, vagabundos, criminosos e prostitutas,
são os principais usuários. Até mesmo portugueses recém-chegados adotam a
prática.
05 – Qual a importância da
tatuagem no mundo do crime, segundo o texto?
No mundo do
crime, a tatuagem tem diversos significados, como amor, desprezo, amuleto,
posse, proteção, ideias patrióticas e qualidades pessoais.
06 – Como os criminosos
escondem suas tatuagens?
Criminosos
escondem suas tatuagens por medo de serem reconhecidos pela polícia ou por
vergonha, considerando-as marcas da sociedade que não conseguiram evitar.
07 – Quais os tipos de
tatuagens mencionados no texto?
O texto menciona tatuagens religiosas, de
amor, com nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça e
tatuagens obscenas.
08 – Qual o significado da tatuagem
para as meretrizes, de acordo com o texto?
Para as
meretrizes, a tatuagem é uma forma de expressar amor e ódio. Elas tatuam o nome
dos amantes, apagam a tatuagem em caso de briga e tatuam o nome no calcanhar
como forma de ofensa.
09 – Onde os marinheiros
costumam fazer tatuagens e quais os seus significados?
Os marinheiros costumam tatuar âncoras e
estrelas, que simbolizam a vida no mar.
10 – Por que alguns criminosos
tatuam símbolos religiosos?
Alguns criminosos tatuam símbolos
religiosos, como um Senhor crucificado, para intimidar os guardas e evitar
castigos físicos.
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