Romance: O guarani – I Cenário – Fragmento
José de Alencar
I CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos
desliza um fio de água que se dirige para o norte, e engrossado com os
mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.

É o Paquequer: saltando de cascata em
cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e
embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário
desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos,
curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas
ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os
barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do
senhor.
Não é neste lugar que ele deve ser
visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o
filho indômito desta pátria da liberdade.
Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o
seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo
esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua
carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua
um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso,
como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se
estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e
onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e
flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava
outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das
margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis
formados pelos leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário
que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos
elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lagar que
acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro
tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo
de penetrar o interior.
Entretanto, via-se à margem direita do
rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de
todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado
o edifício, formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinquenta
braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita
metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos
degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente
construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando
a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado
pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha
aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.
De um e outro lado da escada seguiam
dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois
braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de
espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável.
José de Alencar. O
guarani. 17. ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 15-16.
Fonte: Lições de texto.
Leitura e redação. José Luiz Fiorin / Francisco Platão Savioli. Editora Ática –
4ª edição – 3ª impressão – 2001 – São Paulo. p. 199-200.
Entendendo o romance:
01
– Qual é o rio principal descrito no início do romance?
O rio principal é o
Paquequer, que nasce na Serra dos Órgãos e deságua no rio Paraíba.
02
– Como o rio Paquequer é descrito em sua parte alta e em sua foz?
Na parte alta, o
rio é descrito como selvagem, rápido e impetuoso, saltando entre rochas e
florestas. Próximo à foz, ele se torna calmo e sereno, como um lago, submisso
ao rio Paraíba.
03
– Qual é a comparação utilizada para descrever o rio Paquequer em sua fúria?
O rio é comparado
a um "tapir" e a um "tigre", destacando sua força e
velocidade ao atravessar as florestas e se precipitar em cascatas.
04
– Como é a vegetação nas margens do rio Paquequer?
A vegetação é
descrita como exuberante e selvagem, com florestas virgens, arcarias de verdura
e palmeiras, criando um cenário grandioso e natural.
05
– Em que ano se passa a história descrita no fragmento?
A história se passa no ano
de 1604.
06
– Como era a ocupação da região na época em que se passa a história?
A região era
deserta e inculta, com a cidade do Rio de Janeiro recém-fundada e a civilização
ainda não tendo penetrado no interior.
07
– O que se encontra na margem direita do rio?
Na margem
direita, encontra-se uma casa grande e espaçosa, construída sobre uma elevação
rochosa e protegida por uma muralha natural.
08
– Como é o acesso à casa descrita no fragmento?
O acesso é feito
por uma escada de lajedo e uma ponte de madeira sobre uma fenda na rocha, com
um vale protegido por cercas de espinhos.
09
– Qual a importância do cenário natural na obra de José de Alencar?
O cenário natural
em "O Guarani" não é apenas um pano de fundo, mas um elemento que
interage com os personagens e a trama, refletindo a grandiosidade e a
selvageria do Brasil colonial. Além disso o autor utiliza do cenário para
mostrar a diferença entre a natureza e o homem, onde a natureza é sublime e o
homem um simples coadjuvante.
10
– Quais elementos de segurança e defesa foram construídos ao redor da casa?
Foram construídos
uma escada de lajedo, uma ponte de madeira sobre uma fenda na rocha e uma cerca
de espinhos que protege o vale que dá acesso à casa.
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